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quinta-feira, 13 de outubro de 2011

A outrofobia das amebas cibernéticas


Vim para São Paulo em 1985, com 17 anos. Ao completar 18, precisei obter minha emancipação (naquele tempo, a maioridade era apenas aos 21). O documento, do tamanho de uma folha A4, precisava ser dobrado em várias partes para caber na carteira e no bolso. E, como os militares ainda estavam no poder, não se podia andar sem ele. Porém novos ventos começavam a soprar. É verdade que a famigerada censura ainda classificava e proibia. Mas já apresentava claros sinais de esgotamento.

O incrível é que foi exatamente nessa época de censura que, sozinho em uma cidade que para mim era do tamanho do mundo, deparei com filmes, peças de teatro e livros que me colocaram em contato com a enorme diversidade do ser humano. Lembro de ter visto montagens teatrais muito ousadas, como Nossa senhora das flores, adaptação para teatro do romance de Jean Genet... e tantas outras. Havia público (e não era pequeno) para textos e encenações transgressoras. Minha geração, criada em cativeiro, queria correr solta, desbravar, descobrir e vencer os limites. Por outro lado, havia o respeito à liberdade do outro em ser... apenas... uma pessoa diferente. E quanto mais diferente ela fosse, melhor. Não queríamos ser mais um tijolo na parede, menos ainda marchar uniformizados ou agir como engrenagens de um sistema que só servia para reproduzir, em séries intermináveis, seres robotizados, prestativos e funcionais.


Entretanto, quase três décadas depois, fico surpreso (muito triste e apreensivo) com notícias sobre esta ou aquela pessoa que foi perseguida e/ou espancada por ter cor, religião, origem, sexualidade e/ou ideias diferentes; ministérios, igrejas e sindicatos querendo interferir na criação artística; campanhas de publicidade reacionárias e chauvinistas que reforçam estereótipos e preconceitos contra aqueles que hoje se atrevem a ser diferentes. Infelizmente, na atual sociedade do ter, o ser é mantido com rédea curta, vigiado que nem animal de corte que recebe a mesma marca no couro para que o dono possa reconhecer e controlar o rebanho à distância. Na verdade, o curral imposto pela internet é bem mais sufocante e ameaçador que o dedo do carrasco no gatilho do fuzil, que a lembrança do pau-de-arara ou da fogueira. Virtualmente confinados, todos nós vigiamos e somos vigiados. Distantes e anônimos, a um só tempo nos tornamos algozes e condenados. E o outro, o diferente, aquele que destoa e, por isso mesmo, ameaça a nova ordem... Bem, esse rebelde deve ser identificado e excluído do convívio dos bons e impecáveis senhores do novo mundo. Principalmente, se ele cometeu o desatino de assumir em público certas particularidades que encontram correspondentes (ainda que ocultos e inconfessáveis) em nós mesmos. Hipocrisia é a palavra de ordem! Assim, ao identificarmos no outro aquilo que, bem no fundo, gostaríamos de ser (mas não temos coragem), vamos apontar, discriminar, julgar e, claro, condenar o mais rápido possível. Ao eliminar o outro (que é igual a mim nos meus subterrâneos), estou salvo da ameaça (do meu desejo mais secreto).
  
As fogueiras da ignorância foram acesas novamente – se é que algum dia elas estiveram totalmente apagadas. A multidão (pasteurizada, crédula e anônima) aguarda ansiosa pela execução dos novos hereges, bruxas, pecadores, rebeldes, traidores, enfim, de todos que foram condenados por não acreditar no mesmo deus, não dançar com a mesma música, não chorar com o mesmo drama, não usar a mesma grife, não gozar da mesma forma... Ou seja: numa sociedade de amebas cibernéticas muito bem treinadas para vigiar on-line, o inimigo comum é sempre o outro! Tempos de Outrofobia, talvez este seja o termo mais apropriado para os dias atuais.          


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