Total de visualizações de página

terça-feira, 10 de julho de 2012

Sagrada família e homofobia


Urbanidades, cena 1:
Numa noite dessas (quase madrugada), uma mulher, moradora do prédio ao lado, vinte e poucos anos, gritou desesperada: “Socorro! Ele vai me matar! Chamem a polícia! Estou sendo mantida em cárcere privado!” Em instantes, cabeças foram surgindo nas janelas vizinhas. Várias ligações sem sucesso para o número 190... Mas, “ato seguinte”, a mulher já estava na rua, agora gritando obscenidades para o suposto agressor, gesticulando e fazendo ameaças. Na sequência, retornou com a polícia, que entrou no prédio e saiu conduzindo o “carrasco”. No entanto, vejam só, foi o “facínora” que entrou no camburão, levando uma criança no colo, ainda de pijama e bastante assustada. A suposta “vítima” seguiu em outra viatura, ainda dizendo palavrões, muito nervosa, visivelmente fora de si. TPM? Bem, agora tudo é TPM.

A noite estava fria. A criança, agarrada com força ao pescoço do pai, tremia e chorava de medo. Certamente, seriam conduzidos até a delegacia mais próxima para prestar esclarecimentos sobre o ocorrido etc. 

De volta ao silêncio, fiquei confabulando comigo mesmo sobre o que, de fato, teria acontecido com aquela família? O que levaria uma mãe a pedir socorro e, após ser “liberada”, destilar todo seu ódio a plenos pulmões – mais intrigante ainda: sozinha, deixando o filho pequeno nas mãos do marido-monstro? De volta ao local onde alegara estar em cárcere privado, por que ela não foi logo “salvar” a criança das “garras do bandido”? Por que a criança não pulou logo nos braços da suposta mãe-vítima, preferiu o calor e o abraço do suposto pai-torturador? Com certeza, especulações que não teriam respostas. Dificilmente há respostas e/ou explicações, no mínimo, razoáveis para esse tipo de violência familiar contra crianças indefesas. Apenas marcas profundas, feridas que não cicatrizam.

Acontecimentos desse tipo, que envolvem brigas violentas de casais na frente dos filhos, ao me remeterem a questões antigas, atiçam meus fantasmas, assombrações que de vez em quando ressurgem dos meus porões para me atormentar. Um adulto pode discutir e até se engalfinhar com outro, mas jamais diante de crianças! Repito: jamais!

Ainda naquela noite, em associação nem tão livre assim, outra dúvida continuou a me intrigar: quando religiosos e moralistas de plantão lançam sua fúria contra o que chamam de “ditadura gay” (que nada mais é do que querer estender direitos de cidadania a essa parcela da população brasileira), será que também é para defender esse tipo de “sagrada família”? Esse é o modelo de família que deve ser protegido pela fé e pelo Estado? E vou mais fundo: ora, são os homossexuais (refiro-me aos assumidos, evidentemente) que abandonam mulheres e filhos? São eles/elas que, por acaso, ajudam a lotar os orfanatos e as latas de lixo com suas proles rejeitadas? São eles/elas que batem, humilham, exploram e violam crianças indefesas? Hoje, a impressão que se tem é a de que famílias heterossexuais que vivem em harmonia são a exceção, não a regra. Creio que aqui, então, vale a máxima: “É melhor olhar para o próprio rabo antes de apontar/condenar o próximo”. Mas, infelizmente, não é o que acontece. Pelo contrário. 

Mudando e ficando no mesmo: 
Semanas atrás, por coincidência, eu havia acompanhado pela tevê o discurso de um político da chamada bancada evangélica, no qual ele insistia que aprovar o PLC 122 (que criminaliza a homofobia; ver mais em: http://www.plc122.com.br) e reconhecer a tão temida parceria civil entre pessoas do mesmo sexo é um risco, “como está escrito na Bíblia”, para a sociedade de pessoas “sadias e normais”. E foi mais além: “seria transformar a pedofilia em algo normal, também a zoofilia, a necrofilia”, concluiu. Fiquei perplexo, não com a já esperada “santa ignorância” do tal parlamentar que, suponho, considera-se “sadio, normal e feito à imagem e semelhança de Deus”, mas com o desrespeito aos seus antepassados. Perseguições, lutas, chicotadas, torturas, mutilações, tanto sangue derramado para que um homem como ele, de descendência africana, pudesse hoje estar ali, eleito democraticamente, diante de uma maioria branca, discursando de modo livre... Será que toda essa ancestralidade guerreira não tinha lhe servido para nada? Além do fanatismo e da imbecilidade, pensei, quanta ingratidão desse ser que, pasmem, se considera um “homem de Deus”!

Um aparte: Sim, sou "intolerante" com a (palavra) "tolerância"!
Infelizmente, parece que a cegueira/arrogância não é apenas desse cidadão, mas geral (minha também). Nossa tão alardeada tolerância nos condena. Afinal, ser “tolerante” nada mais é do que reconhecer a inferioridade do outro. Ou seja: só consegue ser tolerante aquele que, por se considerar superior, é capaz de entender a inferioridade e as limitações do outro. Desconfio dela, e não gosto mesmo desta palavra: “tolerância”! É esnobe, equivocada, hipócrita.

Reflexão final: Disfarçada de pós-moderna e, por isso mesmo, evoluída, a sociedade seleciona e vai estocando seus futuros culpados. Com já escreveu João Silvério Trevisan no livro Devassos no paraíso: “A verdade é que a civilização sempre precisou de reservatórios negativos que possam funcionar como bodes expiatórios nos momentos de crise e mal-estar, quando então, por um mecanismo de projeção, ela ataca esses bolsões tacitamente tolerados.” 

Apenas para lembrar: nesses reservatórios "negativos" já estiveram (ainda estão?) putas, feministas, lésbicas, mulheres em geral, bichas,travestis, transexuais, povos indígenas, judeus, negros, nordestinos, macumbeiros, muçulmanos, espíritas, os próprios protestantes etc.    

Mais não digo. 
Apenas penso. 
E, claro, entristeço.