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domingo, 23 de fevereiro de 2014

Nome na boca do anjo



(Pequeno trecho de um novo conto...)


Durante uma consulta pediátrica de rotina, Moréia Karen explicava à comadre o nome dado ao seu recém-nascido:


“Sabe, depois que o Jacleylson me largou com mais este no bucho, eu andava agoniada com essa coisa de escolher nome. Barriga crescendo, e nada. Daí, quando eu já entrava na semana do parto, veio o médico. E ele falou que não era nada de mais aquela acidez no estômago que não me deixava dormir. ‘É do refluxo’, disse. Pronto, foi um anjo que falou pela boca daquele homem: ‘Reflucson’. Nome de gente importante, né, Jadylce? E eu quis com um esse só, pra ficar mais chique.”


quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Andando para trás



Em 2009/2010, graças a um Prêmio de Interações Estéticas que recebi da Funarte, pude dar um grande passo para finalizar minha trilogia "Subterrâneos", iniciada em 2001, com o livro "Caçadores noturnos".


De dezembro a fevereiro, me reuni na sede do Grupo Diversidade Niteroi (GDN) com Pessoas (“P” maiúsculo, mesmo!) que me receberam de braços abertos (carinho e respeito que poucas vezes tive em toda a vida). Lá, eu que vivo enclausurado na minha "ostra" de ficcionista, aprendi a acreditar que era possível, sim, unir forças em torno de um ideal. E o trabalho desse pessoal na ONG é de "formiguinha"; cada dia, um grão... Cada um traz o que pode. Mas juntos, podem MUITO! Tanto que começam a incomodar heterossexuais (será que são mesmo heterossexuais?) homofóbicos. Na calada da noite passada, fizeram "anonimamente" esse estrago na ONG. Documentos desapareceram, equipamentos foram destroçados, frases homofóbicas foram pichadas nas paredes... Enfim, as fotos dizem tudo. 
  


Aqui, vale lembrar a frase de João Silvério Trevisan em "Devassos no paraíso" (não canso de repetir):


"A verdade é que a civilização sempre precisou de reservatórios negativos que possam funcionar como bodes expiatórios nos momentos de crise e mal-estar, quando então, por um mecanismo de projeção, ela ataca esses bolsões tacitamente tolerados."


Pois é... Já foram perseguidos cristãos, judeus, muçulmanos, protestantes, negros, gays, feministas... O DIFERENTE, quando a sociedade sente medo de sair de sua zona de conforto, passa a ser o CULPADO de todas as “mazelas” (ex.: passeatas de ultradireita com propostas fascistas voltaram a ocupar as ruas da Europa e de outras partes do planeta, incluindo aqui, “entre palmeiras e abacaxis”, como escreveu o saudoso Caio Fernando Abreu).


Claro que o ideal é que não precisássemos de leis para isso ou aquilo, bastaria EDUCAÇÃO BÁSICA , e pronto. Mas, de algumas décadas para cá, foi preciso criar leis para proteger negros, mulheres e crianças... Só para "lembrar" aos ignorantes que é proibido SER TROGLODITA. Já havia/há leis na Constituição para homicídios e agressões em geral, mas...  Vejam, até para evitar que alguém quebre a cabeça no volante durante um acidente, foi  fundamental que se criasse uma lei para mexer no bolso dos “esquecidinhos”. E precisava de lei para dizer a alguém: "oh, filhinho, vê se não se mata, tá"?
 
Sinceramente, quanto mais alguns acham que a raça humana evoluiu tanto, mas taaaaanto, que logo será capaz de conquistar novas galáxias, o mundo... Pergunto: pra quê? Para levarmos pelo espaço nossas “boas” e velhas CAVERNAS? Ou já saímos da Idade de Pedra? Quando foi mesmo? Não fiquei sabendo...

terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

Bastidores x fé

Na década de 1980, quando eu trabalhava como divulgador da Editora Vozes, durante uma bienal do livro (ainda era no Ibirapuera), o então em voto de silêncio (ordem papal; nem sei se é assim que se fala) por conta da Teologia da Libertação Frei Leonardo Boff, sentado comigo em um banco enquanto aguardávamos o início de uma de suas palestras no evento,* me disse (mais ou menos com estas palavras):

"Para perder a fé, basta conhecer os bastidores."

Ele nem deve se lembrar disso, óbvio que não. Mas guardei comigo, nunca mais esqueci. E, infelizmente, sei cada vez mais o que ele quis dizer. É, afinal, um homem de visão(ões). A frase vale para todo tipo de fé, percebi isso quando enveredei pelo tal mundo real e conheci vários "bastidores" (artes, empresas, mercados, condomínios, religiões, universidades, pessoas etc.).

Hoje, Boff largou a "batina", casou, dá aulas em universidades. Eu, bem... Ando por aí, em processo avançado de desencando em muitas "áreas", sem dúvida.



* Na época, ele podia falar e publicar livros sobre outros assuntos, exceto Teologia da Libertação.

sábado, 1 de fevereiro de 2014

País do "poder, pode... mas escondido”


No início da década de 1970, quando foi lançado Último tango em Paris, de Bernardo Bertolucci, com Marlon Brando e Maria Scheneider na famosa cena em que o protagonista (que, até determinado momento do filme, é o macho típico, o galã etc.) pede para a amante penetrá-lo com os dedos, lubrificando-os com manteiga... Nossa, que heresia! Logo o Marlon Brando, um dos maiores astros de Hollywood! Claro que o filme foi, por muito tempo, proibido no Brasil (como aconteceu com Laranja Mecânica, de Stanley Kubrick, Império dos sentidos, de Nagisa Oshima, e tantos mais), porém vários casais do Sul (com boas condições financeiras, claro) iam assisti-lo em Montevidéu ou Buenos Aires. Se não me engano, até na cidade que faz fronteira com Uruguaiana, Passo de los Libres, o tal filme “contra a moral e os bons costumes” era exibido em sessões lotadas, filas imensas se formavam nas calçadas.

Mais adiante, 1992/93, quando ganhei uma bolsa para estudar teatro em uma universidade de Tandil, Província de Buenos Aires, pude ver uma produção argentina em televisão aberta, por volta das nove da noite, na qual duas moças apaixonadas se beijaram na boca, beijo de língua em close máximo. E nossa mesa de jantar (eu morava com uma família de classe média argentina) seguiu sem grandes abalos. “Fraquinha esta história”, foi esse o comentário da matriarca da casa, dona Ticiana.


Recentemente, de volta a Buenos Aires a passeio, estávamos caminhando pela Corrientes, de madrugada, quando, de repente, meu companheiro e eu vimos dois gays sendo importunados por um homem: “Ah, que bonito! Posso tirar uma foto de vocês se beijando? Assim, de mãos dadas pela rua, também. E me digam: como a gente faz para ter um amor tão ‘bonitinho’ como o de vocês” Tudo em tom de gozação, para intimidar os dois. Ah, é verdade, o tal homem era um brasileiro visivelmente bêbado. Aqueles rapazes argentinos não o denunciaram. Podiam chamar a polícia; na Argentina há leis que dão garantias e amplos direitos civis a casais homoafetivos. No Uruguai, também. Não, no Brasil, não. Igrejas e supostas sagradas famílias não permitem e blablablá.


Temos, infelizmente, algum problema em relação a sexo, sexualidade, nudez etc.  Biquínis podem ser mínimos na praia, seios e bundas ficam de fora durante os desfiles de escolas de samba... Mas topless é proibido... Praias naturistas, então, poucas e frequentadas apenas por “degenerados”, “gente desavergonhada”, “sodomitas” etc. Claro, também vale citar o caso da atriz Betty Faria, que quase foi condenada a usar burca por ter cometido a “infâmia” de exibir sua verdadeira idade em um biquíni numa badalada praia carioca. “Que horror”, bradaram em coro na internet, “logo a Betty Faria, a nossa eterna Tieta!” E por aí segue a boçalidade...


Em sua obra, Nelson Rodrigues era mestre em abordar esse recalque da classe média brasileira. Há, digamos, uma trava esquisita na nossa libido. Em A falecida, por exemplo, Zulmira, uma dona de casa típica, religiosa e insuspeita, passa a vida falando mal de Glorinha, prima do marido. Segundo ela, aquela Glorinha é um péssimo exemplo de mulher, liberal demais, loira de farmácia, lasciva... Zulmira (para o marido): “Vou te dizer mais o seguinte... Glorinha tem parte com o demônio!” Nas cenas finais, depois de morrer em decorrência de um câncer, o marido da protagonista descobre que, certo dia, ela (que bancava a santa) o traiu descaradamente no banheiro feminino de uma sorveteria na Cinelândia, com um homem de posses, enquanto ele (sim, o marido corno) a aguardava na mesa. E ela ainda teve outros encontros com o amante rico. Certa ocasião, de braços dados com ele na rua, deu de cara com a Glorinha, que, dali em diante, Zulmira passou a chamar de “arrogante” e “safada”.  


Por último, é bom falar do tão “nocivo” Big Brother Brasil... Não seria esse programa um bom “apanhado” das nossas máscaras sociais? Os participantes andam em trajes mínimos, rebolam sensualmente, insinuam-se aqui-ali, falam palavrões... Mas nudez total, jamais! “E minha família, o que vai pensar de mim?” Carícias íntimas? Só embaixo do edredom. Ali, tudo bem, “ninguém vê nada”. Lembrando que até no Big Brother angolano os integrantes costumam tomar banho nus, sem o menor acanhamento. Não há tarjas, nem cortes de edição. E os homens acordam excitados. Afinal, são sujeitos normais. Em outras partes do mundo, edredom pra quê? “Se querem nos ver”, devem pensar, “mostraremos que somos pessoas comuns”. Pretensamente, é um jogo da verdade, não? Assim, os falsos serão eliminados pelos voyeurs que ficam do outro lado da tela. Ora, quem não gosta de espiar a vida alheia, que mude o canal. Pronto: tá resolvido o “problema”. De certa forma, os participantes daqui (que somos, doa ou não, nós mesmos, digo, “os bisbilhoteiros de plantão”) também mostram aquilo que eles são: personagens dúbios, socialmente reprimidos, falsos moralistas. E isso, claro, nos açoita diariamente. Espelho é, sem dúvida, algo muito, muito cruel, não?