Total de visualizações de página

terça-feira, 20 de maio de 2014

Divã no fascisbook


Caro doutor, meu problema de "desencanto progressivo" talvez venha dessa minha incapacidade de ser fã de artistas, não gostar de colecionar coisas ou por ter os pés excessivamente no chão (embora, de vez em quando, eu seja ficcionista para ganhar alguns trocos). Começou lá atrás, bem cedo. Um dia, lembro que meus pais, no início de um dos muitos arranca-rabos que tínhamos durante as refeições, reclamaram:
— Não sabemos mais o que fazer contigo, guri, vive contestando tudo.
— Nem sempre, pai.
— Mesmo de bico fechado, já é um jeito de nos afrontar.
— Aí, já é implicância comigo, né?
— Implicância? Até da catequese já te mandaram embora. "Não acredita em Deus!", disse a pobre freira, traumatizada com a tua boca suja.
Tentei me defender: 
— Mas não é verdade, mãe.
— Então é mentira dela? — minha mãe voltava a ter uma ponta de esperança na “salvação da minha alma”.
— Também não — admiti.  
O pai (cerveja já pela metade no copo, cada um com seus “escudos” para me enfrentar) vociferou: 
— Acredita ou não acredita?
— Na freira?
— Não te faz de bobo, guri! Em Deus, acredita ou não?
— Tem dias que sim, pai, mas não é sempre.
A mãe levou as mãos à cabeça (para ela, acho que gritar pela santa era como beber cerveja): 
— AVE MARIA! — clamou.
— Nem em nós ele acredita! — acrescentou meu velho.
— Me esforço, pai, mas não é fácil.
— Devias ver tua mãe e eu como heróis!
— Hein?
— Não somos heróis para vc? — insistiu o pai. 
— Pode falar —, disse a mãe. — Já estamos acostumados com as tuas esquisitices.
Silêncio. Pai e mãe trocaram olhares apreensivos até eu voltar a abrir a boca:
— Vocês têm capas e voam, por acaso?
— Não tenho capa, nem voo — explodiu a mãe, tinha e ainda tem o pavio mais curto que o meu —, mas meto a mão na tua cara se continuar falando desse jeito.
— Bom, então a pergunta já tá respondida, certo?
Assunto encerrado. Eu devia ter 7 ou 8 anos, não mais que isso. Dos heróis, tudo bem, eu só queria provocar meus velhos, como sempre fazia quando tentavam me pôr na berlinda. Porém, da freira... Veja bem, ela me chamou de ateu e me convidou a não ir mais às aulas de catequese... mas fez isso para não ter que contar aos meus pais que eu havia feito uma aposta com meus colegas, afirmando que freiras não se raspavam. E que elas, de tão compridos os pelos, além de não poder usar calcinhas, tinham que trançar as longas madeixas pubianas para amarrá-las em volta das coxas. Pareciam trepadeiras felpudas no meio das pernas das religiosas, que, às vezes, caminhavam soltando gritinhos... Daí, uma tarde, ela, a que nos dava aula, flagrou um de nós com o espelho de bolso preso na ponta de uma antena de carro. Pisou nele: acabou com o nosso “periscópio", para manter o mistério sob o hábito.  
Será que o meu caso é grave, doutor?



(Para Jean Wyllys, Klecius Borges e Sérgio Miguez.)



Nenhum comentário:

Postar um comentário