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segunda-feira, 6 de junho de 2016

Nos tempos do Cabaré do Ivo


Por falar em “Ivo Rodrigues”... Minha mãe teve salão de beleza na avenida Duque de Caxias (Uruguaiana, RS) – em números diferentes, mas sempre foi lá que ela trabalhou. Cresci ouvindo todo tipo de história. Volta e meia, surgia um novo comentário sobre o Ivo. Vamos ver se me lembro de alguns...

.  Nascido em São Borja (RS) no último dia de julho na primeira década do século passado e abandonado pela família por causa dos trejeitos efeminados que iria apresentar com o tempo, Ivo foi criado na periferia de Uruguaiana por uma velha cafetina em um bordel simples (“tasca”, como se diz lá do Sul). Cuidou da mãe adotiva até o fim. Herdou dela o cabaré. Com gosto refinado e tino, digamos, bastante comercial, revigorou o lugar. Anos depois, já seria dono do bordel mais famoso e requintado da cidade, em uma região bem central.

Era um marqueteiro nato. “Segundo os mais antigos, faltando cinco dias para seu aniversário, Ivo mandava alguém de sua confiança até a emissora de rádio local e pagava dezenas de mensagens em sua homenagem. Aquilo era a largada, pois a partir daí as mensagens começavam a chegar de todas as áreas da cidade, o que fazia seu cabaré ‘bombar’ durante uma semana” (Olhares de Claudia Wonder: crônicas e outras histórias (GLS/Summus, 2008, p. 129-130). 
  
Ele gostava de andar de carruagem (carruagem, aliás, que está exposta hoje no Centro Cultural de Uruguaiana) e ia comprar tecidos finos nas melhores lojas da cidade;

. Embora se vestisse de mulher, fazia questão de ser tratado no masculino;

. Tinha joias caras, perfumes importados e uma coleção de bonecas e outros bibelôs trazidos de vários países;

Meninas “perdidas” (assim eram chamadas as moças que transavam antes do casamento; pior ainda... quando engravidavam) eram chutadas para fora de casa, e Ivo as recolhia nas praças, botecos, rodoviária e estação de trem. Se quisessem ser “da vida”, eram treinadas para tal. Caso contrário, podiam trabalhar em outras atividades no cabaré. Seus filhos (quando elas não queriam abortar), dizem, eram apadrinhados por ele. Não só para moças “perdidas”, mas as portas da casa do Ivo jamais estiveram fechadas para qualquer outra pessoa que precisasse de ajuda;

Para costureiras, encomendava vestidos para ele e suas “meninas”, porém enviava medidas e modelos. Se a roupa precisasse de algum acerto, as instruções seriam enviadas por escrito. Não permitia que as costureiras frequentassem o seu cabaré, nem autorizava suas meninas irem até elas;

Em festas, como Páscoa, Dia das Crianças, Dia das Mães, Natal etc., não havia expediente no cabaré, mas filas enormes se formavam na porta principal. Nenhuma pessoa carente (de qualquer idade, raça etc.) saía dali de mãos abanando;

. Certa vez, um tio meu, muito danado, mas ainda menor de idade, decidiu frequentar o tal cabaré. Sempre muito possante, ele aparentava ser mais velho. Minha mãe, responsável por este irmão (naquele tempo, era comum que as irmãs mais velhas terminassem de criar os irmãos caçulas), descobriu as aventuras do rapazote. Sempre muito durona, foi lá e bateu na porta do cabaré. Mas o Ivo não permitiu que ela entrasse, apenas pediu a um funcionário que ouvisse atentamente e lhe trouxesse a queixa da vizinha. Para desgosto do meu tio, nunca mais foi permitido que ele entrasse no cabaré;

. Quando minha irmã nasceu, em sinal de paz e simpatia, mandou que entregassem aos meus pais um joguinho de talheres para criança, de prata. Minha mãe diz que ainda guarda tal presente do Ivo;  

Também contam que ele, vestido de mulher, carregava um facão escondido embaixo da saia. Quando houvesse confusão no cabaré, ele acabava logo com a briga. Até os fuzileiros e os brigadianos (como são conhecidos os da Brigada Militar) o respeitavam. Eram os mais “brigões”. Porém bastava o Ivo gritar para que se retirassem da casa, que eles obedeciam prontamente;

Sua filantropia ia mais além da distribuição de presentes e alimentos aos necessitados, contam que ajudou muitos jovens em seus estudos, alguns se tornaram “doutores”;

. Na época de Getúlio e Perón, políticos importantes iam ao seu cabaré para tratar de assuntos internacionais;

. Aliás, era comum dizer que, em Uruguaiana, havia apenas dois pontos turísticos: a ponte internacional e o cabaré do Ivo;

. No carnaval, Ivo costumava ser destaque do bloco do Clube Caixeiral. Usava sempre a fantasia mais luxuosa dos desfiles. Era ovacionado. Para evitar a debandada geral do público, desfilava por último. Depois que ele passava, muitos iam embora; tinham ido até lá apenas para vê-lo;

. Nos bailes de carnaval, ele e sua “corte” passavam para cumprimentar os foliões. Era anunciado... Recebia aplausos enquanto dava um giro pelo salão. Agradecia. E logo ia embora. Isso era tradicional. Ou seja: a ilustre visita do Ivo Rodrigues em vários clubes da cidade fazia parte da programação do baile;

Não se sabe muito bem o real motivo, mas chegou um momento em que o cabaré do Ivo começou a decair. Parece que uma filha de criação montou outra casa – a contragosto do pai. A jovem fora criada em colégios caros, o pai não queria que ela seguisse naquele ramo. Mas a filha não só montou um cabaré maior e mais moderno, como fez concorrência direta... Daí veio o fim dos dias de glória do Ivo. Alguns comentam que isso aconteceu mais por desgosto do que por ele, de fato, ter perdido a mão no ramo dos grandes bordéis;

Pobre, velho e com a saúde debilitada devido ao uso abusivo de álcool nos últimos tempos, foi durante uma briga de rua em fevereiro de 1974 que o Ivo morreu. Tinha 66 anos;

Mesmo nessa fase final, decadente e já quase esquecido, uma multidão foi ao seu velório e acompanhou a pé o caixão pela avenida Duque de Caxias até o Cemitério Municipal. Calçadas lotadas... do mesmo jeito que elas ficavam nos desfiles de carnaval, quando Ivo se exibia para receber todos os aplausos;

. Hoje, em Uruguaiana, Ivo Rodrigues é nome de rua, escola de samba e, no dia de Finados, dizem que há romarias para prestar homenagens em seu túmulo;

Parece que há um projeto (ainda não aprovado) para que seja esculpida uma estátua em sua homenagem... Mas os tempos mudaram.

Claro que muitas “passagens” desta história podem ser puro folclore. Na “biografia” dos mitos, a realidade acaba se misturando à fantasia. Ainda vou pesquisar mais sobre a trajetória do Ivo... Um desafio que talvez possa render um novo trabalho.   


19 comentários:

  1. Muchas gracias por tu relato!!! Fascinante la historia de Ivo. Yo lo conocí a través de la lectura de la novela "Ivo el emperador" del escritor argentino, José Gabriel Ceballos , y a partir de entonces comencé a buscar información sobre Ivo, en la web para un proyecto dramaturgico. Mi nombre es Laura, soy argentina y otra vez: muchas gracias!!!!

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    1. Olá, Laura! Que bom que gostou... São apenas anotações afetivas. Vou procurar este livro ("Ivo, el imperador") Tomara que ainda tenha para vender. Tenho tentado pesquisar sobre o Ivo, mas há pouca coisa documentada sobre a vida dele. Abraços.

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  2. Tive oportunidade de ler alguns livros, dos mais variados gêneros, a maneira como escreve,os fatos que narra,se você não é escritor e porque não quer, pois talento lhe sobra, parabéns, além do mais, frequentei o bordel do Ivo, gulizinho, tem muito veterano que conhece esta expressão.

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    1. Obrigado pelos elogios. Sou ficcionista, sim. Alguns livros meus aparecem no canto direito do monitor. Abraço.

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  3. PARABÉNS FELIPE GRECO, PELO BELO TRABALHO SOBRE O IVO DE URUGUAINA, SOU APAIXONADO POR ESSAS NARRATIVAS. PRIMEIRA VEZ QUE OUVI FALAR EM NOME DO IVO, FOI PELA RÁDIO GUAÍBA DE PORTO ALEGRE, NO PROGRAMA DO SAUDOSO RADIALISTA E JORNALISTA FLAVIO ALCARZ GOMEZ, ELE COMENTOU SOBRE O QUARTO DO IVO; FIQUEI ENCANTADO PELA SUA EXPLANAÇÃO!

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    1. Obrigado pelas palavras, Daniel! É projeto antigo meu de escrever algo sobre o Ivo, ainda que seja apenas inspirado na vida dele. Vamos ver se acontece. Abs.

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  4. Fique fascinada pela história do Ivo Rodrigues

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    1. É fascinante, sim. Deve ser registrada antes que se perca.

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  5. Oi Felipe, sou Uruguaianense e lembro dele encerrando os desfiles de carnaval, na Duque, em sua charrete. Muito bom teu relato. Abraço

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  6. Que maravilha essa história. E tu tem um jeito gostoso e simples de contar.As vezes as narrativas se tornam enfadonhas mas a tua so faz querer mais! E que figura essa do Ivo! Prova que caráter e dignidade não tem endereço! Que esteja brilhando no céu!

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  7. Não sei o seu nome, mas agradeço. Abs.

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  8. Eu era bem pequeno. Lembro que parava nas ruas de uruguaiana RS para abanar para aquele homem enorme vestido de mulher. E ele abanava de volta. Recordações de infância que levo de Uruguaiana. Sei que ele era um homem bom e ajudava muita gente pobre.

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  9. Eu andei pelo mundo. Fiz faculdade em uma federal, fiz doutorado em uma outra federal fora do RS. E por onde andei, eu escutava. Você é de Uruguaiana? Sim. Uma vez fui lá e conheci o Ivo e ali começava um relato de ter sido bem atendido. Nas primeiras vezes ficava acanhado, mas fui descobrindo que por ser de uruguaiana e por o Ivo morar lá acabava sendo mais aceito por ando passei. O Ivo foi o cartão postal de Uruguaiana.

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  10. Felipe
    Gury nossa que Material estás publicando quem mora ou morou em uruguaiana rssss conhece o saudoso Ivo! Eu e meu irmão pequenos usando chulita todos dias íamos visita- ló pois a mãe enchia um cesto de pastéis saíamos para vender e íamos direto no Ivo pois ele gostava do pastel da mãe e tinha que ser quentinho e por isso éra nossa primeira visita ele enchia a boca de pastel e caia pelos beiços kkk depois mandava as chinas se servirem fazíamos a festa vendia quase tudo pagava na hora e ainda dava uns pilas para nois. E nos não eramos bobos ficava vendo as gurias barbaridade cada uma mais bonitas em nossa visão infanti eram umas princesas o Ivo não gostava que crianças frequentasse e nos corria de chinelo.
    É isso gury foi um milagre achar teu blog para ler e informações e essa do Ivo e uruguaiana foi demais.
    Ha foi meu irmão que enviou essa matéria.Maravilhosa!
    Desculpa se falei muito kkkk
    Mas falar de uruguaiana nós trás lembranças inesquecíveis que daria vários livros não é Felipe?
    Abraços
    Prazer
    Agora sou seu fã Uruguaiense
    Saudosista e Agora Cariucho!

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  11. Muito obrigado por suas palavras e lembranças.

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  12. Essa história que foi relatada do Ivo Rodrigues tudo é verdade minha mãe era pequena quando falava no famoso cabaré do Ivo Rodrigues minha tia morou do lado do cabaré

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  13. Muito gratificante recordar tudo isso pois vivi e testemunhei essa época. Vi muitas vezes o Ivo desfilando em sua carruagem. Guri na época, vendi muitos ovos no cabaré (ele não deixava entrar). Muita fidelidade nesta história. Muito obrigado e parabéns.

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