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sexta-feira, 17 de fevereiro de 2017

Meu tratamento Personnalité



A minha vida é muito estranha. Volta e meia, recebo ligações como essa:

“Alô, seu João Felipe!”

Respiro fundo. Apesar da voz jovial, educada e do tom de locutor de programas noturnos para insones solitários, ele errou feio: detesto que me tratem por “seu” e por “João”. O primeiro, porque acho um desaforo; sou velho, sei que sou velho, ninguém precisa me jogar isso na cara o tempo todo. O segundo, porque até hoje não conheço esse João. Tentaram grudar em mim esse outro sujeito, mas só dou conta (mal e porcamente) de um: do Felipe. 

Bem, depois de o fulano se identificar, perguntei:

“Gerente da minha conta? O que eu fiz dessa vez?”

“Não, nada, senhor...”

“Se continuar me chamando de senhor, vou bater o telefone na sua cara!”

“Oh, desculpe! É que tenho uma boa notícia...”

“Boa pra quem? Só pode ser pro banco, não?”

“Não, pro senh...”


“Putz! Já avisei que vou desligar...”


“Pra VOCÊ.... Desculpe! É que, analisando o seu histórico, o Itaú resolveu lhe contemplar com um cartão Personnalité.”


“E o que é isso?”


“Nunca ouviu falar?”


“Já, mas quero saber o que eu ganho com isso?”


“Status, prestígio...”


“Ah, tá! E o que eu ganho com isso?”


O rapaz, já achando que tinha ligado para um manicômio, continuou sendo gentil. Depois de dar uma risadinha nervosa, explicou:


“Nas suas relações sociais, em todas as situações, ter um cartão desses faz muita diferença.”

“Ah, entendi... Mas não estou interessado, não. Obrigado.”

“Veja, não terá custo algum...”

“Banco não cobrando nada? Conta outra, vai...”

“O senhor é um ótimo cliente, seu histórico...”

“Você deve estar enganado. Essa ficha é de outro cliente. A minha só tem traço de menos antes dos números.”

O moço era duro na queda, não dava o braço a torcer. Devia ser gerente novo querendo atingir sua meta diária de enganar trouxas.

“Mas, Felipe... Acertei agora, né?”

“Hum, hum...”

“Sei que já lhe ligaram antes para lhe oferecer o MasterCard Black, e você não aceitou... Só que agora é o Platinum.”

Só rindo, viu! Esses caras novatos devem estar querendo tirar uma com a cara de clientes ferrados que nem eu. Não é possível que estejam falando sério. Só não fecho conta em banco para ter uma segunda carteira, sempre com algum dentro, ainda que não seja meu... e depois esses agiotas legalizados me cobrem uma fortuna em juros. Segunda carteira, porque a primeira, a que carrego no bolso de vez em quando, é apenas para os documentos. Já estou tão acostumado com ela sem grana, que, se me deparar com uma nota graúda ali dentro, sempre tomo um susto, achando que é de outra pessoa e que peguei aquilo por engano em algum lugar.

Enfim, voltando ao telefonema, era hora de encerrar aquele papo furado... 

“Amigo, não leve a mal, mas não estou interessado. Você ligou para o cliente errado.”

“Pense melhor. Ter status e prestígio, isso abre muitas portas hoje em dia!”

“Pois é... Mas esse seu cartão não vai fazer a menor diferença nos lugares que eu costumo frequentar.”

“Não? Como assim?”, agora o mocinho levou um baita susto.

“Não, amigo. Os muquifos e puteiros que eu frequento costumam pedir dinheiro vivo na porta. Se não pagar adiantado, ninguém entra. E se der uma de engraçadinho depois de entrar, não sai mais. Respirando, não.”

Foi o tiro de misericórdia nele. Deu tchau, prometendo que eu não seria mais importunado. Mentira, claro. É só entrar outro gerente, que receberei uma nova ligação. Devo ter virado uma espécie de trote “oficial” para os novatos da minha agência. Mas admito que senti um pouquinho de remorso. Ora, e eu ia fazer o quê, mentir? O.k., tentarei ser mais cordial com o próximo... Não prometo, mas vou fazer uma forcinha para dar a ele o meu tratamento Personnalité.




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