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domingo, 26 de novembro de 2017

Bateu, levou!




Aqui, estudando os orixás para poder elaborar o “esqueleto” de um novo texto, pesquisei sobre Xangô, que é um arquétipo da justiça, dos raios e do fogo. Carrega um machado duplo (afiado nos dois lados). Dado ao prazer, teve três esposas: Iansã, Oxum e Obá. Por mais que pareça autoritário e implacável, é extremamente justo. Odeia a falsidade e a mentira. Quem invoca (ou se mete com) essa força da natureza precisa estar atento à lei do retorno. Aquele que comete alguma injustiça ou pede justiça sem merecê-la, da mesma forma que usa o machado de Xangô para prejudicar alguém, receberá de volta outro golpe ainda pior, direta ou indiretamente (por meio de seus familiares etc.). 

Não sou profundo conhecedor de mitologia africana, porém noto muita correspondência com os deuses egípcios, gregos, romanos e celtas. No fundo, é sempre o homem tentando explicar/justificar suas forças internas (força natural “versus” freios da consciência). 

No catolicismo também há essa semelhança. Por exemplo, quando é atribuído a cada santo um tipo de “área de atuação”. Por isso, dizem os estudiosos que não há religião monoteísta, já que as que se consideram seguidoras do “deus único” também admitem a existência do diabo, a divindade que está sempre em combate com o seu maior inimigo: deus. O diabo seria um filho rebelde e desnaturado ou a outra face de deus? Não há resposta. 

O que mais me seduz nas mitologias é o fato de os deuses estarem próximos das limitações humanas; não são imaculados, nem inatingíveis. Estudar as mitologias é olhar para dentro (para encarar os nossos próprios abismos), não para o céu (um paraíso inalcançável). 

Deixando o meu ceticismo espiritual à parte, acredito, sim, na lei do retorno (pregada em todas as religiões e crenças). Aliás, mais que acreditar, sou testemunha disso. Aos 50 anos, já vi muita coisa, conheço bem o "roteiro" de quase todos os "filmes". Xangô, na minha visão, seria a nossa consciência; não tem juiz mais atento e austero que ela. 

Como diz o ditado: “Aqui se faz, aqui se paga”. Este será o mote do meu novo trabalho. Não pelo lado moralista/civilizatório/religioso, mas somente tendo a consciência como foco principal da narrativa e da trama.

Bora lá, para a minha estiva! Hoje é domingo? Pois é, para alguns... Ficcionista não tem folga. 



terça-feira, 14 de novembro de 2017

Romance perdido




Faz tempo isso... Era final dos anos 1980. Numa tarde, eu estava na sala do apartamento do Caio Fernando Abreu, na rua Haddock Lobo(se não me falha a memória), enquanto ele terminava o último capítulo do romance Onde andará Dulce Veiga?. Naquela época, os textos ainda eram datilografados. Não havia muitos computadores nas casas. Para ter uma segunda via de um texto, ou o autor ia até a loja de fotocópias mais próxima ou usava papel carbono.

Lá pelas tantas, o interfone tocou... e subiu o office boy da editora. Caio colocou os originais em um envelope e entregou o novo livro a ele. 


Aquilo me deixou assustado. 


"Mas você não vai ficar com uma cópia?", perguntei. 


Ele respondeu tranquilamente que "não"; não havia necessidade, já que o livro seria publicado... e ele teria muitas cópias daquela história.


Meu lado exagerado e trágico falou mais alto:


"E se o cara for roubado ou sofrer um acidente e as páginas se espalharem por aí?"


Depois de rir balançando a cabeça, Caio deu uma funda tragada no cigarro (fumava muito, um depois do outro) e disse com uma calma que me deixou ainda mais perplexo:


"Se as folhas do livro forem levadas por um ladr
ão ou pelo vento, paciência; há romances que nascem perdidos, não acha?"


Caio tinha essas frases... E até hoje, por andar sem fôlego e engavetar muitas histórias, penso nisso que ele me disse: há, sim, textos/sentimentos que nascem anêmicos, sem força, desanimados. A verdade é que semente sem terra boa não vinga. Infelizmente, agora não temos uma sociedade disposta a ler, ver peças, bons filmes... Quando a crise bate, a arte é a primeira coisa a ser deixada de lado. Pior: artistas são demonizados, perseguidos, eliminados.


Vamos ver até quando isso vai durar.


Por enquanto, o silêncio pode dizer mais que muitas palavras.


Obs.: Bem depois daquele meu encontro com o Caio, outro amigo (que, aliás, me apresentou ao escritor) levou o romance para as telonas. Em 2008, Guilherme de Almeida Prado dirigiu Onde andará Dulce Veiga?. Caio já tinha nos deixado em 1996. Talvez ele tenha se enganado: nem todo "romance" (desejo?) se perde para sempre. A vida tem seus caprichos. Cedo ou tarde, a terra se renova e as sementes descartadas voltam a germinar como se nada tivesse acontecido. A pressa é sempre dos homens, não da natureza.