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terça-feira, 14 de novembro de 2017

Romance perdido




Faz tempo isso... Era final dos anos 1980. Numa tarde, eu estava na sala do apartamento do Caio Fernando Abreu, na rua Haddock Lobo(se não me falha a memória), enquanto ele terminava o último capítulo do romance Onde andará Dulce Veiga?. Naquela época, os textos ainda eram datilografados. Não havia muitos computadores nas casas. Para ter uma segunda via de um texto, ou o autor ia até a loja de fotocópias mais próxima ou usava papel carbono.

Lá pelas tantas, o interfone tocou... e subiu o office boy da editora. Caio colocou os originais em um envelope e entregou o novo livro a ele. 


Aquilo me deixou assustado. 


"Mas você não vai ficar com uma cópia?", perguntei. 


Ele respondeu tranquilamente que "não"; não havia necessidade, já que o livro seria publicado... e ele teria muitas cópias daquela história.


Meu lado exagerado e trágico falou mais alto:


"E se o cara for roubado ou sofrer um acidente e as páginas se espalharem por aí?"


Depois de rir balançando a cabeça, Caio deu uma funda tragada no cigarro (fumava muito, um depois do outro) e disse com uma calma que me deixou ainda mais perplexo:


"Se as folhas do livro forem levadas por um ladr
ão ou pelo vento, paciência; há romances que nascem perdidos, não acha?"


Caio tinha essas frases... E até hoje, por andar sem fôlego e engavetar muitas histórias, penso nisso que ele me disse: há, sim, textos/sentimentos que nascem anêmicos, sem força, desanimados. A verdade é que semente sem terra boa não vinga. Infelizmente, agora não temos uma sociedade disposta a ler, ver peças, bons filmes... Quando a crise bate, a arte é a primeira coisa a ser deixada de lado. Pior: artistas são demonizados, perseguidos, eliminados.


Vamos ver até quando isso vai durar.


Por enquanto, o silêncio pode dizer mais que muitas palavras.


Obs.: Bem depois daquele meu encontro com o Caio, outro amigo (que, aliás, me apresentou ao escritor) levou o romance para as telonas. Em 2008, Guilherme de Almeida Prado dirigiu Onde andará Dulce Veiga?. Caio já tinha nos deixado em 1996. Talvez ele tenha se enganado: nem todo "romance" (desejo?) se perde para sempre. A vida tem seus caprichos. Cedo ou tarde, a terra se renova e as sementes descartadas voltam a germinar como se nada tivesse acontecido. A pressa é sempre dos homens, não da natureza.  





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