Total de visualizações de página

sexta-feira, 2 de novembro de 2018

Mais aviso que epitáfio






Tenho um livro sombrio de 2003 sobre a morte (sobre o “se deixar morrer” e “matar para realizar a vontade dos que querem morrer”), chamado O COVEIRO. É uma novela literária meio “trash”. Se tudo correr bem, este livro, junto com CAÇADORES NOTURNOS e mais o inédito ESCORPIÃO, que encerra a minha trilogia SUBTERRÂNEOS DO DESEJO... os três serão publicados em nova edição (revista) e edição inédita para ESCORPIÃO ainda este ano. Os dois primeiros, apenas em eBook (livro digital), o terceiro em edição convencional, mas limitada e numerada (para colecionador).

Será um derradeiro “desatino” da Editora Desatino, já que não há mais como distribuir livros físicos, nem pontos de venda.


Para mim, como autor, será ainda pior, pois me colocará em risco: os três títulos abordam o desejo e o sexo nas mais variadas formas. Sexo sempre será um tabu em um país que não consegue se olhar no espelho e ver como realmente é, não o que gostaria de ser (e muitos acreditam ser). Em vez de gozar livremente o desejo, falsos puritanos preferem fiscalizar o tesão alheio. O peso da culpa cria amarras, não deixa a pessoa viver plenamente. Essa repressão interior costuma ser devolvida ao “outro” em altas doses de ódio, rancor, inveja.


Nelson Rodrigues disse certa vez: “O que seria dos padres, se não existissem as feias?” Eu me atrevo a “atualizar” essa pergunta para: “O que seria da internet hoje, se as transas fossem muito boas para todos?”


Mas, voltando aos mortos de O COVEIRO...


Para escrever este livro, fiz vários passeios no Cemitério do Araçá (não tão bonito e rico quanto outros com túmulos e esculturas magníficas, como este da foto, mas creio que é o único que tem uma bela visão panorâmica de São Paulo). Lá estão os anônimos e também os famosos, como Cacilda Becker, Nair Bello (na época de produção do livro, ela ainda estava viva) e outros que já não me lembro. Sinceramente, cemitérios me trazem paz, fico calmo e mais criativo que em outros lugares. É inspirador passear pelos corredores, ver fotos e ler epitáfios. Cada foto é uma história diferente, com início, meio e fim. Mas gosto mesmo é de visitar túmulos de gente que não conheci. Sei lá, acho que, com o passar dos anos, fica estranho. Quando temos mais gente conhecida e amiga sepultada do que nas ruas, bate uma sensação de que a nossa história começou a se apagar; não há mais testemunhas daquilo que vivemos.


Bom, em alguns casos, é melhor nem ter mais testemunhas de certos “deslizes” na nossa biografia. A criatura que ainda podia nos fazer algum tipo de “chantagem”... já foi! Ufa, menos um!


Preciso fazer aqui uma pausa para “ilustrar” essa questão de já termos mais gente nossa enterrada do que viva... Meu pai costuma dizer que, ultimamente, com mais de oitenta anos, para não ser surpreendido, ao encontrar um amigo na rua já vai logo beliscando para perguntar:


“Bah, tchê, tu estás vivo mesmo ou eu já morri também?”


Ainda sobre as fotos... Admito que é a parte do passeio que mais me atrai. Fico intrigado com a escolha que o familiar fez. Há alguns que morreram com trezentos anos, mas a foto é da fase jovem. Será que foi por imposição do morto? “Se colocarem a minha foto de velho, ninguém vai receber um centavo de herança!” Também há os lindos e as lindas. Sim, os novos são mais sortudos; morrem ainda bonitos e viçosos. É claro que há também os feios. Esses são os que me deixam mais confuso. Será que não dava para melhorar a foto ou foi de maldade mesmo que algum parente desalmado fez aquilo com o morto para expor e eternizar a feiura dele? Em vez de homenagem, seria uma vingancinha póstuma?


Não, a gente não vai saber nunca a resposta. Cada foto de morto é uma espécie de esfinge para curiosos incorrigíveis (como eu).


Gabriel García Marquéz escreveu em MEMÓRIAS DE MINHAS PUTAS TRISTES, seu belo e, ao mesmo tempo, melancólico romance de despedida da literatura, que uma pessoa só pertence a um lugar quando enterrar seus mortos nele. Não sou de São Paulo, vim de longe, mas já enterrei alguns mortos “meus” aqui. Então já sou daqui. Sou e não sou só daqui, porque também tenho mortos meus em outros lugares. Andarilho de nascença, é natural que eu tenha deixado outros mortos por onde passei. No fundo, como diz o Ramiro da minha novela literária, todos nós somos coveiros: dos outros e de nós mesmos. Como túmulos ambulantes, vamos carregando os nossos mortos por aí, até finalmente nos juntarmos a eles.


Com isso em mente, quando fui fotografar para a capa da nova edição de O COVEIRO (que, no fim, nem será utilizada) brinquei com o rapaz (um coveiro de verdade) que, a pedido da administradora do cemitério, me acompanhava pelas alamedas floridas e perfumadas do Araçá:


“Na minha lápide, se houver uma, quero que não escrevam essas frases piegas de saudades eternas da família, nem de que o morto foi muito melhor do que ele realmente era, mas apenas: ‘ESTEVE AQUI QUEM AQUI NUNCA ESTEVE DE FATO’. Os que me conheceram de verdade e aguentaram as minhas esquisitices vão entender esse meu último recado (e não aparecerão tão cedo para me visitar).”


Enfim...


Feliz dia dos mortos para os que já morreram e para os que ainda estão vivos! Os vivos, ultimamente, andam precisando mais dessa felicidade do que os finados.


No mais, caro(a) leitor(a), deixe flores para os seus queridos defuntos, depois volte lá para aquela sua vidinha sem graça e tente dar uma bela e necessária sacudida nela, antes que seja tarde, se é que já não é!


- - - - - - - - -


Crédito da foto do Cemitério São Paulo: “De Alfredo Oliani, destaca-se o conjunto escultórico ‘Último adeus’, considerada uma das obras mais instigantes da arte cemiterial na cidade de São Paulo. A obra foi encomendada por Maria Cantarella, por ocasião da morte do marido, Antônio. Representa um homem no vigor da idade inclinando-se sobre a esposa morta, em um apaixonado beijo de despedida. Oliani buscou atender ao pedido da viúva, de uma escultura que celebrasse abertamente o seu amor pelo marido, reconhecendo-o como vivo em sua memória e a ela mesma morta, sem a sua companhia.” (Wikipédia)



2 comentários:

  1. Sensacional! Amo tudo que escreve amigo.
    Sua clareza e a colocação das palavras me envolve,sinto como se estivesse presente em todas situações!
    Grande beijo!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Obrigado, amiga!!!! Fique à vontade, visite sempre que quiser este blog. Beijo.

      Excluir