Faz tempo isso... Era final dos anos 1980. Numa tarde, eu estava na sala do apartamento do Caio Fernando Abreu, na rua Haddock Lobo(se não me falha a memória), enquanto ele terminava o último capítulo do romance Onde andará Dulce Veiga?. Naquela época, os textos ainda eram datilografados. Não havia muitos computadores nas casas. Para ter uma segunda via de um texto, ou o autor ia até a loja de fotocópias mais próxima ou usava papel carbono.
Lá pelas tantas, o interfone tocou... e subiu o office boy da editora. Caio colocou os originais em um envelope e entregou o novo livro a ele.
Aquilo me deixou assustado.
"Mas você não vai ficar com uma cópia?", perguntei.
Ele respondeu tranquilamente que "não"; não havia necessidade, já que o livro seria publicado... e ele teria muitas cópias daquela história.
Meu lado exagerado e trágico falou mais alto:
"E se o cara for roubado ou sofrer um acidente e as páginas se espalharem por aí?"
Depois de rir balançando a cabeça, Caio deu uma funda tragada no cigarro (fumava muito, um depois do outro) e disse com uma calma que me deixou ainda mais perplexo:
"Se as folhas do livro forem levadas por um ladrão ou pelo vento, paciência; há romances que nascem perdidos, não acha?"
Caio tinha essas frases... E até hoje, por andar sem fôlego e engavetar muitas histórias, penso nisso que ele me disse: há, sim, textos/sentimentos que nascem anêmicos, sem força, desanimados. A verdade é que semente sem terra boa não vinga. Infelizmente, agora não temos uma sociedade disposta a ler, ver peças, bons filmes... Quando a crise bate, a arte é a primeira coisa a ser deixada de lado. Pior: artistas são demonizados, perseguidos, eliminados.
Vamos ver até quando isso vai durar.
Por enquanto, o silêncio pode dizer mais que muitas palavras.
Obs.: Bem depois daquele meu encontro com o Caio, outro amigo (que, aliás, me apresentou ao escritor) levou o romance para as telonas. Em 2008, Guilherme de Almeida Prado dirigiu Onde andará Dulce Veiga?. Caio já tinha nos deixado em 1996. Talvez ele tenha se enganado: nem todo "romance" (desejo?) se perde para sempre. A vida tem seus caprichos. Cedo ou tarde, a terra se renova e as sementes descartadas voltam a germinar como se nada tivesse acontecido. A pressa é sempre dos homens, não da natureza.
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