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segunda-feira, 13 de janeiro de 2020

A atriz e o poeta



Sexta-feira passada, fomos à estreia de MEU QUINTAL É MAIOR DO QUE O MUNDO, da obra do poeta Manoel de Barros, interpretado por Cássia Kis e dirigido por Ulysses Cruz. 

Engraçado como a vida vai e volta em espirais... Logo que vim do Sul para São Paulo, fui apresentado à loucura e ao intenso mundo poético de Arthur Rimbaud, menino terrível do século XIX, que viveu um amor tempestivo e quase trágico com Paul Verlaine (poeta parnasiano já renomado naquele período). Rimbaud escreveu toda a sua obra com menos de vinte anos, depois foi traficar armas na África. Nunca mais escreveu. Só foi ter reconhecimento muito, mas muito depois de sua morte. Era gênio. O mundo raramente reconhece os gênios no tempo certo.


Manoel de Barros, nascido em Cuiabá, morreu recentemente, em 2014. Pelo que li, o verso livre, libertário e contraventor de Rimbaud o soltou das amarras do poema com suas regras e métricas. Poesia em prosa, talvez por ir mais além, também vai mais fundo. Rimbaud escreveu seu (até hoje) insuperável e arrebatador UMA ESTAÇÃO NO INFERNO (“Une saison en enfer”). Barros, nesse espetáculo, escancara o seu “imenso quintal interior”, oferecendo ao público palavras que servem de escadas/pontes para um resgate afetivo de memórias muito especiais. Aliás, vários resgates: também o de palavras muito bem polidas (algo raro hoje). Admito que poetas me assombram; eles nos enfeitiçam com palavras e imagens vivas demais. 


Cassia Kis brinca em cena, no melhor sentido. Não é a atriz, mas o poeta entretido nesse ofício de polir versos, incansavelmente. Ela, com uma paixão antiga pela poesia de Manoel de Barros, tinha esse projeto engavetado por trinta anos. Aquele “quintal maior que o mundo” também é dela (e com ela em cena... também passa a ser de todos nós).


Já fui apresentado a Cássia pelo Ulysses, mas brinco com ele, dizendo que tenho medo dela, porque essa atriz possui uma força que talvez possa bater direto com o meu destempero. Sou explosivo, acho que ela também é. Daí, talvez seja melhor manter a distância. “Medo” não é a palavra, mas “respeito”. Tenho um profundo respeito pelo trabalho visceral e pela “verdade” dessa profissional em cena (principalmente, no cinema).


No entanto, depois do espetáculo, foi oferecido um coquetel. Ulysses não foi. Ele não vai às próprias estreias, assim como eu tenho tentado evitar lançamentos de livros meus. Esse povo das artes é meio doido (ou totalmente). 🤪🤪 Eu, decidido a não ficar para o brinde, aguardava para sair. Nisso, a atriz veio... ia passar onde eu estava. Sorri cordialmente. Ela parou, segurou a minha mão e ficou ali... Apesar de cansada (fazer um monólogo é exaustivo), ela me transmitiu muita serenidade. Não me soltava, como se tivesse lido os meus pensamentos e quisesse dizer que tudo aquilo era bobagem da minha cabeça: poetas não são bruxos e atrizes (como ela) não mordem. Antes de se afastar, disse: “Fique aí, não vá embora!” 


Não fiquei. Não adianta; muitas coisas ainda me assombram. Sem isso, sem essas “pendências” pessoais (ou “esquisitices”), a arte não surge (não com tanta força).  


Belo e importante espetáculo! 


Grato, Ulysses! Grato, Cássia! Grato, Manoel de Barros! Está em cartaz. O Teatro-D, novo no Itaim Bibi, é muito bonito. Fica na rua João Cachoeira, 899 / São Paulo - SP. Telefone: (11) 3079-0451 


Bora lá (re)ver a importância da palavra bem polida! Versos nos atiçam e, ao mesmo tempo, dão uma amansada nos nossos fantasmas. O nosso quintal interior tem muita coisa bonita, mas também muitos espinhos.



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