Caro doutor, meu problema de
"desencanto progressivo" talvez venha dessa minha incapacidade de ser
fã de artistas, não gostar de colecionar coisas ou por ter os pés
excessivamente no chão (embora, de vez em quando, eu seja ficcionista para
ganhar alguns trocos). Começou lá atrás, bem cedo. Um dia, lembro que meus pais, no início de um dos muitos arranca-rabos que tínhamos durante as refeições, reclamaram:
— Não sabemos mais o que fazer
contigo, guri, vive contestando tudo.
— Nem sempre, pai.
— Mesmo de bico fechado, já é um jeito de nos afrontar.
— Aí, já é implicância comigo, né?
— Implicância? Até da catequese já te mandaram
embora. "Não acredita em Deus!", disse a pobre freira, traumatizada com a tua
boca suja.
Tentei me defender:
— Mas não é
verdade, mãe.
— Então é mentira dela? — minha
mãe voltava a ter uma ponta de esperança na “salvação da minha alma”.
— Também não — admiti.
O pai (cerveja já pela metade no
copo, cada um com seus “escudos” para me enfrentar) vociferou:
— Acredita ou
não acredita?
— Na freira?
— Não te faz de bobo, guri! Em
Deus, acredita ou não?
— Tem dias que sim, pai, mas não
é sempre.
A mãe levou as mãos à cabeça (para
ela, acho que gritar pela santa era como beber cerveja):
— AVE MARIA! — clamou.
— Nem em nós ele acredita! — acrescentou meu velho.
— Me esforço, pai, mas não é
fácil.
— Devias ver tua mãe e eu como
heróis!
— Hein?
— Não somos heróis para vc? —
insistiu o pai.
— Pode falar —, disse a mãe. — Já estamos acostumados com as tuas esquisitices.
Silêncio. Pai e mãe trocaram
olhares apreensivos até eu voltar a abrir a boca:
— Vocês têm capas e voam, por
acaso?
— Não tenho capa, nem voo — explodiu a mãe, tinha e ainda tem o pavio
mais curto que o meu —, mas meto a mão na tua cara se continuar falando desse
jeito.
— Bom, então a pergunta já tá respondida, certo?
Assunto encerrado. Eu devia ter 7 ou 8 anos, não mais que isso. Dos heróis, tudo bem, eu só queria provocar meus velhos, como sempre fazia quando tentavam me pôr na berlinda. Porém, da freira... Veja bem, ela me chamou de ateu e me convidou a não ir mais às aulas de catequese... mas fez isso para não ter que contar aos meus pais que eu havia feito uma aposta com meus colegas, afirmando que freiras não se raspavam. E que elas, de tão compridos os pelos, além de não poder usar calcinhas, tinham que trançar as longas madeixas pubianas para amarrá-las em volta das coxas. Pareciam trepadeiras felpudas no meio das pernas das religiosas, que, às vezes, caminhavam soltando gritinhos... Daí, uma tarde, ela, a que nos dava aula, flagrou um de nós com o espelho de bolso preso na ponta de uma antena de carro. Pisou nele: acabou com o nosso “periscópio", para manter o mistério sob o hábito.
Será que o meu caso é grave,
doutor?
(Para Jean Wyllys, Klecius Borges e Sérgio Miguez.)
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