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terça-feira, 4 de abril de 2023

Ajeita os óculos e senta, que lá vem textão...

Fiz Segundo Grau, que passou a ser Ensino Médio. Dei uma olhada no que vai mudar, alterações que vêm desde Temer, em 2017 (lembram dele? Eu nem queria, mas tive que me lembrar). Bolsonaro assinou a portaria em 2021, que previa as três fases para a implantação: 2022, 2023 e 2024, cada uma para um ano do Ensino Médio. Haverá maior flexibilidade para o aluno escolher algumas disciplinas para a sua formação. Não tive isso. Estudávamos todas as disciplinas e a média na escola pública era bem alta (sete e meio, se não me engano). O mundo mudou muito, claro. Cada época tem as suas prioridades e urgências. E é natural (por despeito ou uma pitada de inveja, talvez) que as gerações mais antigas torçam o nariz para tais “novidades” no ensino dos filhos, netos e bisnetos). A dos meus pais, por exemplo, criticava a caligrafia da mimha (que, comparada a deles, era medonha mesmo) e o fato de não termos decorado direito a tabuada (eu... nunca passei do “5”. Levantei uma vez de um teste de seleção numa empresa que não fornecia calculadora para os candidatos. “Ora, se não tinha dinheiro para calculadora, não teria para pagar o salário que eu queria receber”, falei para a moça do RH, e me mandei dali... Ah, também reclamei da cadeira antes de sair, era velha, balançava, tirava a concentração). 

Atualmente, talvez muitos da minha geração critiquem essas mudanças na grade curricular (é assim que se chama?). Ficou mais “fácil” para a moçada, parece. Não sei dizer... O que sei é que, na minha época, fui forçado a estudar que nem doido um monte de matérias que não me serviram para nada. Das que de fato me interessavam, tive pouco tempo para aproveitar (e me aprofundar). Que falta faria na minha vida saber do cosseno do triângulo retângulo? Ah, isso ajuda a desenvolver o lado abstrato... Literatura e arte em geral, também. Perdi um tempo danado decorando fórmulas, nomes e regras. Para mim, que mal guardo o nome das pessoas, foi um período de tortura mental. E aquela tabela periódica, então... Um inferno! Ensino tem que ser prático, um instrumento facilitador, um bom convite ao conhecimento, não o inverso. “Saber” tem que ter “sabor” (palavras, já escrevi isso faz tempo, que têm a mesma origem etimológica). Sem isso, só enfiando goela abaixo, como fizeram comigo. Não tenho tão boas lembranças desse tempo de escola. Valeu pelas pessoas que conheci. O.k., nem todas. Desde cedo gostando de teatro, livros e escrevendo, sofri bullying (nem se sabia o que era isso naquele tempo). Mas, como eu tinha um gênio forte e sabia encarnar o cão quando necessário, esses babacas não chegavam muito perto de mim. Nessa parte, admito, eu até que me divertia com o medo que alguns sentiam de mim. Ali, mesmo sem saber, eu já aprendia a enfrentar e a domar as feras (bem mais furiosas) que eu teria que encarar mais adiante. Talvez a pior de todas: eu, o meu ego. 



quarta-feira, 14 de dezembro de 2022

Novos caminhos


Antes, na pressa (e ingenuidade) de quem era jovem e sonhador, eu me desdobrava em mil para que esse ou aquele projeto desse certo. Ficava frustrado quando nada acontecia. Hoje, apenas faço a minha parte da melhor maneira possível e deixo acontecer (ou não). Se não acontecer, vejo que não era mesmo para acontecer. E que bom que não aconteceu daquele jeito, no tempo, lugar e com as pessoas que eu imaginava ideais.

Nas noites em que meu pai e eu nos despedimos, mesmo sem querer, ele me ensinou mais essa... Ele, que também foi relojoeiro, me fez entender (aceitar) as engrenagens do tempo, que não são as mesmas dos relógios e calendários. Ao finalizar o conto livremente inspirado naquelas nossas conversas, encomenda do meu velho, de certa forma eu me despedia de um tempo que já não me pertence mais... também não tem muito sentido carregar comigo. Um escritor, no fundo, é um inconformado, um rebelde movido pela paixão de contar histórias, iludir, provocar. “Um bom texto é único e apresenta uma visão de mundo peculiar”, ouvi de uma amiga que é importante agente literária no exterior. Essa visão de mundo muito minha (e estranha para alguns), ainda tenho. A paixão pela escrita, não mais, e gosto menos ainda de tudo que envolve o universo dos escritores. Não é que tudo passe com o tempo, mas muita coisa vai perdendo o gás... se acomoda por dentro. Faz anos que não tenho mais a empolgação de antigamente com novos textos, livros e lançamentos meus. Acho que o Narciso interno do Felipe Greco (que é heterônimo, não pessoa real) foi domado. Melhor assim. E a vida seguirá por outros caminhos, outras curiosidades e novos desejos. 



sábado, 19 de março de 2022

Amor idealizado demais


 

Por falar em Rússia (na época, União Soviética e ainda estávamos na Guerra Fria), Andrei Konchalovsky dirigiria o seu primeiro filme nos EUA. Esta obra, apesar do título, não é sobre o amor romântico. Ou melhor: é, mas que não se completa exatamente por haver excesso de amor. O próprio amor exagerado impede o relacionamento do casal. 

É de 1984. Exibido no Brasil com o atraso normal de um ou dois anos, talvez até mais. Cada longa tinha, em média, oito rolos. Tudo demorava mais para chegar aos cinemas.

Ainda adolescente, assisti três vezes no mesmo dia para entender (ou chegar perto disso) a complexidade das personagens e a imensa solidão de cada um deles. Naquele tempo, era possível ver várias vezes o mesmo filme. Bastava continuar sentado na sala. As salas eram enormes, os funcionários não percebiam... ou não se importavam com os “ratos de cinema”.

Nastassja Kinski, mais lembrada (infelizmente) pela sua beleza e sensualidade, estava outra vez magnífica em cena. Faria outros filmes importantes, com diretores do chamado cinema de arte.

OS AMANTES DE MARIA (que, aliás, temos na nossa videoteca para rever de vez em quando) é obra que não envelheceu, nem envelhecerá, pq fala de sentimentos e conflitos humanos.

PARIS, TEXAS (do alemão Wim Wenders) também é outro filme dessa atriz que está intacto no tempo. Ela não aparece tanto, mas é responsável por uma das cenas que jamais vão sair da minha mente. Tanto que fiz uma referência à impressionante sequência do “bordel de espelhos” em O COVEIRO (romance de 2003 e 2019), recriando a cena de modo ainda mais decadente e marginal.

Era um período de grandes roteiros. Havia contexto e plateia para filmes com tramas mais densas e que exigiam um público mais atento e informado.

Pode ser que volte, mas vai demorar. A minha geração não estará mais aqui.


sábado, 27 de novembro de 2021

Tristeza nossa de cada dia






Ontem, em um vídeo publicado por Maria Padilha, atriz que admiro muito desde nem sei quando... o texto que ela dizia (transcrito de entrevista da filósofa e poeta Viviane Mosé) me deu uma sacudida boa (principalmente agora que, depois de tantos fatos pesados que enfrentei em 2021, preciso finalizar um trabalho bastante visceral, com desabafos intensos/dolorosos das personagens).
A atriz falava de sofrimento, dos equívocos que nos levam a acreditar que ele não é bom.
Ora, não é questão de ser ou não bom, mas necessário.
Como bichos que precisam passar pelo sofrimento e pela dificuldade de romper e se livrar da casca antiga, que precisa ser descartada para que ele possa se tornar maior e seguir para um nova fase da vida, o sofrimento humano não precisa ser "curado", mas encarado como uma etapa natural da existência. "Cascas" internas que devem ser rompidas para que a pessoa se torne mais forte, melhor.
Encarar o sofrimento, entender o sofrimento para poder enfrentá-lo e vencer aquela dor.
Infelizmente, em vez de enfrentar nossas "dores" existenciais, psicológicas etc., preferimos partir logo para as lamentações inúteis. É imaturo isso, covarde. Ninguém suporta alguém que se queixe de tudo o tempo todo. Bom, talvez "ninguém" seja exagero, mas eu não suporto, não. Mando passear, me afasto. Todos nós ficamos alegres, mas isso passa e volta. Todos nós sofremos, mas isso passa... e, de vez em quando, volta. Olhando de fora, não dá para medir quem sofre mais ou quem sofre menos. A alegria, idem. Mas em maior ou menor grau, alegria e tristeza vão se revezando ao longo da vida de todos nós.
Estar vivo é isso.
Importante: falo de sofrimento, não de depressão, que é doença e tem tratamento.

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quarta-feira, 19 de agosto de 2020

A criança terrível ("L'enfant terrible")



“Deveria ter o meu inferno pela cólera, meu inferno pelo orgulho, – e o inferno da preguiça; um concerto de infernos.


“Morro de cansaço. É o túmulo, vou para os vermes, horror de

horrores! Satã, farsante, queres dissolver-me com teus feitiços?

Exijo. Exijo! um golpe de tridente, uma gota de fogo.”


...................................


“Je devrais avoir mon enfer pour la colère, mon enfer pour l’orgueil – et l’enfer de la caresse; un concert d’enfers.


“Je meurs de lassitude. C’est le tombeau, je m’en vais aux vers, horreur de l’horreur! Satan, farceur, tu veux me dissoudre, avec tes charmes. Je réclame. Je réclame! un coup de fourche, une goutte de feu.”


(Arthur Rimbaud, trecho de UMA ESTAÇÃO NO INFERNO, 1873)



Jean-Nicolas Arthur Rimbaud foi amante de Paul Verlaine, poeta francês que abandonou a mulher e o filho pequeno para viver essa paixão fulminante e explosiva por um adolescente de temperamento forte e atitudes fora dos padrões (“l’enfant terrible”). Numa crise de ciúme e alcoolizado, Verlaine deu dois tiros no amante, que já havia completado 18 anos. Uma das balas pegou no pulso do rapaz. Mesmo sem ser denunciado pela vítima, Verlaine foi condenado a dois anos de prisão.

Dos 15 aos 18 anos, Rimbaud escreveu obras-primas que só seriam devidamente valorizadas um século depois (e acabariam influenciando grandes músicos, poetas e escritores). Aos 20 anos, desistiu de escrever e foi para a África negociar café e armas. Não precisava mais escrever; o que tinha a dizer, já havia dito. 

Viveu intensamente. Teve mulheres como amantes em várias partes. Sabe-se que uma da Etiópia foi a que ficou mais tempo com ele. Em um acidente, Rimbaud machucou a perna direita que, anos depois, precisou ser amputada – porém o carcinoma já havia se formado no joelho. 

De volta a Marselha, França, aos 37 anos, após muito sofrimento, morreu de câncer. Era 10 de novembro de 1891.





sábado, 9 de maio de 2020

Dia de todas as mães



Sobre o instinto de proteger a vida dos filhos ou filhotes, lembro-me de um fato que testemunhamos (Rogério e eu) num domingo de primavera. Já faz bastante tempo... Latidos insistentes nos acordaram bem cedo. Eram de uma cadelinha muito magra... Havia um terreno baldio em frente ao nosso condomínio, com muros altos e um portão de ferro. A cachorra tentava passar pelas frestas do portão, cavando inutilmente o concreto da calçada. Estava muito aflita. Dois rapazes passavam pela rua, então gritei para eles verem o que estava acontecendo com o animal. Eram filhotes: ela tinha parido, e alguém havia jogado os filhotes dela naquele terreno, dentro de uma caixa de papelão. Enquanto eu me preparava para descer, um vizinho tentou capturar os filhotes com um galho, mas eles estavam longe demais do portão; não dava para puxá-los... e a mãe, ao lado dele e com as patas já em carne viva, continuava tentando fazer um buraco no cimento. Não adiantava tentar afastá-la; ela voltava... e seguia cavando.

Quando consegui ir até lá, o tal vizinho já havia passado a cadelinha por cima do muro. Agora mais tranquila e deitada no meio dos entulhos, ela amamentava os filhotes.

Não tinha muito o que fazer naquele momento. Por sorte, era um dia bonito. Graças aos tocos de árvores e caixotes amontoados do lado de dentro, a cadelinha podia sair daquele terreno, mas não conseguia entrar. Duas ou três vezes durante aquele dia, eu e outras pessoas a ajudamos a pular o muro para que pudesse amamentar os filhotes. Enquanto isso, pensávamos no que podia ser feito para resolver aquela situação.

Eram quatro filhotes: três fêmeas e um macho. Uma das fêmeas, branca e caramelo, tinha um olho azul e outro castanho bem claro. Temíamos que eles saíssem pelas frestas do portão e fossem atropelados pelos carros ou caíssem no bueiro. Resolvemos isso, cobrindo a parte inferior do portão com madeiras.

Segunda-feira, fomos no primeiro horário até uma ONG de animais, que nos instruiu e forneceu equipamento adequado e um ajudante para o resgate dos filhotes. Deu tudo certo. A ONG ficava perto dali; a mãe dos filhotes nos seguiu à distância, mancando e ainda apreensiva. Logo depois das primeiras vacinas e da castração, os filhotes foram adotados. O ideal seria que a mãe os amamentasse até o fim, também fosse castrada... mas, talvez por ter visto que os filhotes estavam bem, ela desapareceu. Devia ter um “dono”. Cães, mesmo recebendo maus-tratos, tendem a permanecer fiéis aos seus tutores.

A maternidade é algo que os homens jamais compreenderão. Essa força que liga a mãe aos filhos é sobrenatural, não tem como medir. Entre os humanos (diferente do mundo animal), é claro que existem exceções. De vez em quando, os noticiários nos apresentam casos extremos de mulheres que abandonam, maltratam, exploram e até chegam a mutilar os seus rebentos. Felizmente, são exceções. A regra é a do amor incondicional para o resto da vida. Mulher é mãe, sempre... seja de filho natural, seja de filho adotado, seja de amigos, seja dos próprios pais e avós, enfim, têm esse instinto de proteger, cuidar até o fim... e com uma força que ninguém sabe de onde elas tiram. Tenho minha mãe de sangue, mulher guerreira e de muita fibra, a Negrinha (ela detesta ser chamada pelo nome de batismo e tratada por “dona” ou “senhora”). Também tive outras protetoras ao longo dessas minhas andanças e tropeços. Relacioná-las aqui? Ih, a lista seria loooonga... E como escolher a ordem dos nomes? Daria confusão, porque elas são muito ciumentas.    

Então, a todas as mulheres, feliz Dia das Mães!




segunda-feira, 20 de abril de 2020

Como em Macbeth




Nasci, cresci, fui adolescente e me tornei adulto durante a ditadura militar. Soube de pessoas perseguidas, torturadas e que ficaram com sequelas importantes. Um professor homossexual, um pouco mais próximo do meu círculo de amizades, suicidou-se depois de ter sido preso durante uma batida policial de rotina. Vítima de estupro coletivo, sangrou quase até a morte com o reto perfurado com cacos de vidro de uma garrada de refrigerante. Primeiro introduziram, depois quebraram a garrava com chutes e pauladas. Nunca se refez totalmente da agressão. Deprimido, pulou de um prédio na  Roosevelt, em São Paulo.

Admito que, por mais que estudasse o tema, eu não conseguia entender direito como a nossa sociedade tinha deixado a barbárie tomar conta do país. 

Agora, sim, entendo que foi uma parte da sociedade que pediu que aquilo acontecesse, por ser truculenta, autoritária, intelectualmente acomodada e acostumada ao cabresto. E a outra parte, por cruzar os braços, assistir de longe e silenciar, foi tão ou até mais culpada. 

Esse pensamento de “se não é comigo, não me interessa” é mesquinho, triste, desolador e revoltante. Não é um comportamento democrático, nem civilizado.

Antes, já tinha acontecido outra ditadura, a Vargas. E no início, o império, a colônia. Também tivemos (ainda temos) o extermínio de povos indígenas, o horror da escravidão (último país a abrir mão do trabalho escravo)... 




Direta ou indiretamente, todos nós somos culpados.

O tal clamor de “nossa bandeira jamais será vermelha” é falso. Ela já está vermelha: de sangue! O Brasil não é, nem nunca foi uma maravilha. Isso é outro mito. Cristãos hipócritas, ajoelhamos diante da cruz, mas com muito sangue nas mãos... é isso que somos. Em determinados períodos sombrios, sentimos muito orgulho disso.

quarta-feira, 8 de abril de 2020

Teias na tela e na história





Acabei de ver O BEIJO DA MULHER ARANHA, baseado no romance de Manoel Puig, com William Hurt, Raúl Juliá e Sônia Braga, direção de Héctor Babenco e figurinos de Patrício Bisso. Hurt ganhou Oscar de melhor ator e outros grandes prêmios. Raúl Juliá morreu novo, em 1994, de AVC. Babenco, em 2016, vítima de uma parada cardiorrespiratória. Patrício Bisso, em 2019, de infarto fulminante. Sônia, mais velha e livre do peso de ser símbolo sexual latino, tem dado uma bela guinada no currículo. Hurt, infelizmente, não fez outro filme de sucesso. Não como O BEIJO...




A obra foi lançada em 1985, quando saíamos da ditadura militar. Com 17 anos, eu tinha acabado de vir morar em Sampa. Havia um beijo na boca entre os personagens do Raúl Juliá (guerrilheiro, hétero e preso político) e o do William Hurt (gay assumido e companheiro de cela). Os militares e a direita (o que era praticamente “sinônimo” – era?) torceram o nariz, mas já não podiam mais censurar; alguns da esquerda também não gostaram muito do filme, porque colocava um guerrilheiro fiel à causa se deixando levar por um envolvimento gay. Era pelo que os personagens significavam, não o beijo em si, pois, em 1980, Tarcísio Meira e Ney Latorraca já tinham se beijado até com mais sensualidade e emoção na cena final de O BEIJO NO ASFALTO, adaptação para as telonas da peça de Nelson Rodrigues. Mas O BEIJO DA MULHER ARANHA, por ser produzido também pelos EUA, foi exibido em todo o país. Ganhou muitos prêmios, Sônia Braga foi fazer carreira nos exterior e o livro virou musical de sucesso na Broadway.


Eu, bem novinho, logo passei a escrever roteiros na Boca do Lixo, filmes de terror “trash”.

Vendo novamente esse belo filme, outro passou na minha cabeça. Sonhávamos tanto nesse tempo, líamos pilhas de bons livros, víamos grandes peças e também éramos ratos de cinema (Godard, Wenders, Kurosawa, Bergman, Ana Carolina, Babenco, Ruy Guerra, Fellini, Pasolini, Nagisa Oshima, David Lynch, David Lean, Peter Greenaway, Wood Allen e tantos outros mestres), queríamos e lutávamos pela democracia. E conseguimos... Mas agora, com tudo isso, tanto ódio e retrocesso, parece mentira que deixamos escapar tudo aquilo... Dá um nó por dentro. O bom é que o filme não envelheceu, coisa rara no cinema nacional. Eu sim, me senti cansado e velho.

Bem, missão cumprida: enfrentamos as censuras, os hipócritas de sempre, quebramos tabus, vivemos plenamente. Se a nova conquista da democracia e da liberdade foi recusada, paciência. Que as novas gerações lutem (se é que vão lutar) pelo que acharem certo e mais apropriado para as suas necessidades. O tempo e as cabeças mudaram. Assistirei a essa nova fase apreensivo, mas já sem tanta empolgação. Não vale a pena. Este país nunca deixará de ser o que é. A diferença é que daqui em diante talvez já sem os falsos mitos e também sem as máscaras de povo cordial e solidário. Não somos, nunca fomos. Sempre flertamos com o autoritarismo e o fascismo. Volta e meia, essa nossa natureza se recolhe, mas sempre que se sente acuada, mostra os dentes, rosna, ataca.


terça-feira, 31 de março de 2020

Hipócritas da fé



Belo e muito significativo esse gesto do papa. No entanto, já o estão chamando por aí de “velho comunista defensor de bandidos”. Sim, também de argentino FDP. Estava demorando para colocarem defeitos nele por ser argentino.

Ora, e Jesus, que tanto apregoam nas redes sociais, fez o quê? Acumulou posses para si, estocou peixes, pães e ouro? Viveu nos palácios entre os imperadores? Se tudo isso é verdade ou não, não sabemos, mas é o que está registrado no Novo Testamento. Deve ser um guia básico de comportamento para o cristão.

Já leram? Mas leram mesmo? Entenderam?

Pois é, vemos que muitos estão de joelhos diante da cruz, mas com os bolsos cheios de pedras, punhais e pólvora.


segunda-feira, 13 de janeiro de 2020

A atriz e o poeta



Sexta-feira passada, fomos à estreia de MEU QUINTAL É MAIOR DO QUE O MUNDO, da obra do poeta Manoel de Barros, interpretado por Cássia Kis e dirigido por Ulysses Cruz. 

Engraçado como a vida vai e volta em espirais... Logo que vim do Sul para São Paulo, fui apresentado à loucura e ao intenso mundo poético de Arthur Rimbaud, menino terrível do século XIX, que viveu um amor tempestivo e quase trágico com Paul Verlaine (poeta parnasiano já renomado naquele período). Rimbaud escreveu toda a sua obra com menos de vinte anos, depois foi traficar armas na África. Nunca mais escreveu. Só foi ter reconhecimento muito, mas muito depois de sua morte. Era gênio. O mundo raramente reconhece os gênios no tempo certo.


Manoel de Barros, nascido em Cuiabá, morreu recentemente, em 2014. Pelo que li, o verso livre, libertário e contraventor de Rimbaud o soltou das amarras do poema com suas regras e métricas. Poesia em prosa, talvez por ir mais além, também vai mais fundo. Rimbaud escreveu seu (até hoje) insuperável e arrebatador UMA ESTAÇÃO NO INFERNO (“Une saison en enfer”). Barros, nesse espetáculo, escancara o seu “imenso quintal interior”, oferecendo ao público palavras que servem de escadas/pontes para um resgate afetivo de memórias muito especiais. Aliás, vários resgates: também o de palavras muito bem polidas (algo raro hoje). Admito que poetas me assombram; eles nos enfeitiçam com palavras e imagens vivas demais. 


Cassia Kis brinca em cena, no melhor sentido. Não é a atriz, mas o poeta entretido nesse ofício de polir versos, incansavelmente. Ela, com uma paixão antiga pela poesia de Manoel de Barros, tinha esse projeto engavetado por trinta anos. Aquele “quintal maior que o mundo” também é dela (e com ela em cena... também passa a ser de todos nós).


Já fui apresentado a Cássia pelo Ulysses, mas brinco com ele, dizendo que tenho medo dela, porque essa atriz possui uma força que talvez possa bater direto com o meu destempero. Sou explosivo, acho que ela também é. Daí, talvez seja melhor manter a distância. “Medo” não é a palavra, mas “respeito”. Tenho um profundo respeito pelo trabalho visceral e pela “verdade” dessa profissional em cena (principalmente, no cinema).


No entanto, depois do espetáculo, foi oferecido um coquetel. Ulysses não foi. Ele não vai às próprias estreias, assim como eu tenho tentado evitar lançamentos de livros meus. Esse povo das artes é meio doido (ou totalmente). 🤪🤪 Eu, decidido a não ficar para o brinde, aguardava para sair. Nisso, a atriz veio... ia passar onde eu estava. Sorri cordialmente. Ela parou, segurou a minha mão e ficou ali... Apesar de cansada (fazer um monólogo é exaustivo), ela me transmitiu muita serenidade. Não me soltava, como se tivesse lido os meus pensamentos e quisesse dizer que tudo aquilo era bobagem da minha cabeça: poetas não são bruxos e atrizes (como ela) não mordem. Antes de se afastar, disse: “Fique aí, não vá embora!” 


Não fiquei. Não adianta; muitas coisas ainda me assombram. Sem isso, sem essas “pendências” pessoais (ou “esquisitices”), a arte não surge (não com tanta força).  


Belo e importante espetáculo! 


Grato, Ulysses! Grato, Cássia! Grato, Manoel de Barros! Está em cartaz. O Teatro-D, novo no Itaim Bibi, é muito bonito. Fica na rua João Cachoeira, 899 / São Paulo - SP. Telefone: (11) 3079-0451 


Bora lá (re)ver a importância da palavra bem polida! Versos nos atiçam e, ao mesmo tempo, dão uma amansada nos nossos fantasmas. O nosso quintal interior tem muita coisa bonita, mas também muitos espinhos.