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segunda-feira, 20 de abril de 2020

Como em Macbeth




Nasci, cresci, fui adolescente e me tornei adulto durante a ditadura militar. Soube de pessoas perseguidas, torturadas e que ficaram com sequelas importantes. Um professor homossexual, um pouco mais próximo do meu círculo de amizades, suicidou-se depois de ter sido preso durante uma batida policial de rotina. Vítima de estupro coletivo, sangrou quase até a morte com o reto perfurado com cacos de vidro de uma garrada de refrigerante. Primeiro introduziram, depois quebraram a garrava com chutes e pauladas. Nunca se refez totalmente da agressão. Deprimido, pulou de um prédio na  Roosevelt, em São Paulo.

Admito que, por mais que estudasse o tema, eu não conseguia entender direito como a nossa sociedade tinha deixado a barbárie tomar conta do país. 

Agora, sim, entendo que foi uma parte da sociedade que pediu que aquilo acontecesse, por ser truculenta, autoritária, intelectualmente acomodada e acostumada ao cabresto. E a outra parte, por cruzar os braços, assistir de longe e silenciar, foi tão ou até mais culpada. 

Esse pensamento de “se não é comigo, não me interessa” é mesquinho, triste, desolador e revoltante. Não é um comportamento democrático, nem civilizado.

Antes, já tinha acontecido outra ditadura, a Vargas. E no início, o império, a colônia. Também tivemos (ainda temos) o extermínio de povos indígenas, o horror da escravidão (último país a abrir mão do trabalho escravo)... 




Direta ou indiretamente, todos nós somos culpados.

O tal clamor de “nossa bandeira jamais será vermelha” é falso. Ela já está vermelha: de sangue! O Brasil não é, nem nunca foi uma maravilha. Isso é outro mito. Cristãos hipócritas, ajoelhamos diante da cruz, mas com muito sangue nas mãos... é isso que somos. Em determinados períodos sombrios, sentimos muito orgulho disso.

quarta-feira, 8 de abril de 2020

Teias na tela e na história





Acabei de ver O BEIJO DA MULHER ARANHA, baseado no romance de Manoel Puig, com William Hurt, Raúl Juliá e Sônia Braga, direção de Héctor Babenco e figurinos de Patrício Bisso. Hurt ganhou Oscar de melhor ator e outros grandes prêmios. Raúl Juliá morreu novo, em 1994, de AVC. Babenco, em 2016, vítima de uma parada cardiorrespiratória. Patrício Bisso, em 2019, de infarto fulminante. Sônia, mais velha e livre do peso de ser símbolo sexual latino, tem dado uma bela guinada no currículo. Hurt, infelizmente, não fez outro filme de sucesso. Não como O BEIJO...




A obra foi lançada em 1985, quando saíamos da ditadura militar. Com 17 anos, eu tinha acabado de vir morar em Sampa. Havia um beijo na boca entre os personagens do Raúl Juliá (guerrilheiro, hétero e preso político) e o do William Hurt (gay assumido e companheiro de cela). Os militares e a direita (o que era praticamente “sinônimo” – era?) torceram o nariz, mas já não podiam mais censurar; alguns da esquerda também não gostaram muito do filme, porque colocava um guerrilheiro fiel à causa se deixando levar por um envolvimento gay. Era pelo que os personagens significavam, não o beijo em si, pois, em 1980, Tarcísio Meira e Ney Latorraca já tinham se beijado até com mais sensualidade e emoção na cena final de O BEIJO NO ASFALTO, adaptação para as telonas da peça de Nelson Rodrigues. Mas O BEIJO DA MULHER ARANHA, por ser produzido também pelos EUA, foi exibido em todo o país. Ganhou muitos prêmios, Sônia Braga foi fazer carreira nos exterior e o livro virou musical de sucesso na Broadway.


Eu, bem novinho, logo passei a escrever roteiros na Boca do Lixo, filmes de terror “trash”.

Vendo novamente esse belo filme, outro passou na minha cabeça. Sonhávamos tanto nesse tempo, líamos pilhas de bons livros, víamos grandes peças e também éramos ratos de cinema (Godard, Wenders, Kurosawa, Bergman, Ana Carolina, Babenco, Ruy Guerra, Fellini, Pasolini, Nagisa Oshima, David Lynch, David Lean, Peter Greenaway, Wood Allen e tantos outros mestres), queríamos e lutávamos pela democracia. E conseguimos... Mas agora, com tudo isso, tanto ódio e retrocesso, parece mentira que deixamos escapar tudo aquilo... Dá um nó por dentro. O bom é que o filme não envelheceu, coisa rara no cinema nacional. Eu sim, me senti cansado e velho.

Bem, missão cumprida: enfrentamos as censuras, os hipócritas de sempre, quebramos tabus, vivemos plenamente. Se a nova conquista da democracia e da liberdade foi recusada, paciência. Que as novas gerações lutem (se é que vão lutar) pelo que acharem certo e mais apropriado para as suas necessidades. O tempo e as cabeças mudaram. Assistirei a essa nova fase apreensivo, mas já sem tanta empolgação. Não vale a pena. Este país nunca deixará de ser o que é. A diferença é que daqui em diante talvez já sem os falsos mitos e também sem as máscaras de povo cordial e solidário. Não somos, nunca fomos. Sempre flertamos com o autoritarismo e o fascismo. Volta e meia, essa nossa natureza se recolhe, mas sempre que se sente acuada, mostra os dentes, rosna, ataca.