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sexta-feira, 30 de novembro de 2018

O prato nosso de cada dia




“Animal ou vegetal, um ser morreu em sacrifício para nos manter vivos. É esse o sentido maior de respeito e gratidão antes das refeições. Também a gratidão a todas as mãos que fizeram aquele alimento chegar até o seu prato.” Ouvi isso num documentário sobre religiões afros e fiquei pensando no que o sacerdote disse. Acredito que muitos também nunca pensaram nisso, porque sempre nos ensinaram a agradecer a Deus, o fulano lá de looooonge... 

Por isso, em algumas religiões, animais que servirão de alimento são mortos por especialistas, pessoas treinadas para aquele ato acontecer rápido e com o mínimo de sofrimento possível. Eles acreditam que, se o seu prato estiver com a dor e a agonia do animal, a comida não fará bem para o nosso corpo, nem para o espírito. Faz sentido. Porém em grande escala e com o lucro em primeiro lugar isso é impossível. Eu ainda consumo carne de grandes frigoríficos e outros itens de origem animal oferecidos por produtores gigantes. Estou muito longe dessa lucidez e evolução espiritual. Mas, quem sabe, um dia... 

Ainda menino, em uma fazenda de Uruguaiana, vi uma ovelha ser degolada para ser esquartejada e assada para o almoço de domingo. Tudo acontece muito rápido. Mas é difícil esquecer o olhar de pavor do bicho pendurado pelas patas traseiras. Algumas ainda estão agonizando quando já começaram a retirar a sua pele. Naquele almoço, não comi o churrasco. Depois, tentei não pensar mais na cena. Comprando em partes nos supermercados a gente finge que não sabe como tudo é feito. E muitos não sabem mesmo, nem querem saber... 

“Mas aqueles bichos são criados em cativeiro, não têm noção de nada”, é a justificativa que se ouve por aí.


Bem, se é assim, quando a ciência evoluir na área de transplantes etc., podemos criar humanos em cativeiro para abate e retirada de órgãos. Um clone de estimação, por exemplo, para que possamos arrancar e substituir os pedaços que falharem no nosso corpo. Ora, sem problemas. Afinal, eles foram criados ali para esse fim, não terão a menor noção de como é a vida lá fora.


Sem dúvida, é algo que vamos ter que rever com urgência. As religiões mais antigas já sabiam de tudo isso, mas foram “soterradas” pela nossa ganância. Predadores na natureza também abatem quase instantaneamente suas presas. É provável que eles também saibam que a dor deve ser evitada ao máximo. São mais evoluídos que nós por matarem apenas para saciar a fome, não para acumular cadáveres e negociá-los em pedaços, como nós fazemos (e cada vez em maior escala). 




segunda-feira, 26 de novembro de 2018

Arte é coisa de vagabundo





Já enfrentei e assumi muitas coisas sem ter grandes transtornos, apesar de causar escândalo para alguns e inveja (?) para outros. No entanto, por incrível que pareça, demorei muito para me assumir como um criador (ou artista, tanto faz), talvez por causa de tudo que ouvi de negativo sobre essa atividade desde pequeno. E, ultimamente, tenho escutado e lido mais agressões contra esse meu legado (ou profissão, ainda que muitos digam que é "coisa de vagabundo"). 

Por coincidência, indo ontem ver o Paulo Gustavo no Tom Brasil, com o seu emblemático espetáculo MINHA MÃE É UMA PEÇA... casa lotada, três mil pessoas, 16 anos em cartaz e viajando pelo país... Bastava ele aparecer em cena, começavam os aplausos, os risos... Todo mundo feliz. O ator com uma forte gripe, tossia de vez em quando, mas também estava feliz e grato por tudo aquilo. No final, como ela estava nos bastidores, o artista chamou a sua mãe para cantarem juntos uma música de encerramento da apresentação. Lá estava a famosa mãe do Paulo Gustavo, afinadíssima, ajudando o filho a cantar, já que ele, por estar resfriado, não conseguia alcançar algumas notas. Amigos queridos nos deram de presente os ingressos e foram conosco. Um final de domingo para gargalhar e também, no meu caso, pensar mais um pouco sobre esse atual "levante" contra os artistas. Dia desses, li uma postagem, dessas com frases de efeito que vão sendo compartilhadas mais por compulsão do que por passarem/representarem uma ideia com a qual os "repassadores", de fato, se identifiquem ou concordem. Nela, era possível ler algo assim: "precisamos de engenheiros, professores, médicos etc., mas nunca de artistas".        

Pois bem, para quem acredita que arte é absolutamente dispensável, que se livre dela, ora! É "simples". Rasgue livros, desligue a televisão, tire os quadros das paredes, as estampas dos móveis e das roupas, não vá mais ao cabeleireiro fazer aquele corte da moda, deixe de ver filmes, também apague os afrescos das igrejas, arranque as imagens dos altares e, claro, pare de cantar hinos para louvar o seu deus e cantigas para ninar os seus filhos, netos... Também não use mais joias, nada disso que vem dos "famigerados e dispensáveis" artistas. Enfim, elimine a arte (seja ela qual for) e veja como ficará a sua vida. 

Mesmo em estado selvagem, animais se enfeitam ou produzem ninhos espetaculares, também emitem sons e fazem belas danças para o acasalamento. Arte é uma forma de transcender, sair do lugar-comum, enfrentar a morte, agradecer por estar vivo, demonstrar essa gratidão em forma de criações que vão ficar por aí como herança para os que virão. Por mais que tenha evoluído, arte ainda tem o mesmo significado (e importância) que os desenhos deixados nas cavernas: é um vestígio, sinal para futuros arqueólogos (ou exploradores vindos de outros planetas, se aqui já não existir mais vida humana). Sim, para esses "extraterrestres" é bem provável que a arte deixada tenha mais valor "científico" que todo o resto, por não ter "verdades" tão inconstantes quanto a engenharia, as escolas, a medicina etc.   

Agora, se você não gosta, tudo bem. Cada um que viva com o que lhe basta. Mas não venha aqui, ler, curtir e se fartar gratuitamente com os meus textos... e depois sair por aí, arrotando sua ira contra mim e os meus parceiros de estiva. 

Por favor, mais respeito!

Goste ou não, muitos de nós deixarão contribuições para a eternidade. E você, vai deixar o quê? Apenas rancor, recalque e ódio? Quem deixa esse tipo de “obra” para a posteridade são os tiranos. 

Queira ou não, tudo é arte. Só não vê e sente isso quem não quer (ou não pode). Se grande ou menor arte, isso é o de menos para o tempo. Afinal, um brinco de osso deixado por civilizações pré-históricas tem maior ou menor importância que uma partitura de Mozart? 

Pensemos. 




sexta-feira, 9 de novembro de 2018

Andando em círculos






Domingo passado, ao rever na televisão o filme MEMÓRIAS DO CÁRCERE, baseado no livro homônimo de Graciliano Ramos, dirigido por Nelson Pereira dos Santos, fiquei pensando o quanto a história se repere. É a tal “espiral do eterno retorno” proposta pelo filósofo Friedrich Nietzsche. Embora o filme não seja um dos melhores do Nelson e tenha envelhecido em termos estéticos e “dramáticos” (na interpretação dos atores), o roteiro mostra a Ação Integralista Brasileira (AIB) do período Vargas (uma ditadura sob o comando de um populista, que foi tema do meu Trabalho de Conclusão de Curso na faculdade de Relações Internacionais). 

Com o pavor (quase surreal) do comunismo disseminado nas multidões (que nem sabiam o que era comunismo) e pela moral e os bons costumes (defendido pelas famílias e igrejas), o Brasil mandava os descontentes (tidos como “inimigos da pátria”) para os calabouços. Houve perseguição, tortura e extermínio naquele período. Quando os Integralistas cansaram Getúlio com o seu “Anaê”,  grito de guerra que significa “você é meu irmão” (em tupi), foram dispersados e passaram a constar apenas nos livros de história. 

Em 1964, com novo golpe, militares (hoje se sabe que apoiados por Whashington) tomavam o poder com a mesma desculpa de “pela moral, pelos bons costumes e para afastar o comunismo”. Sim, a boa e velha desculpa de “comunismo”. Aliás, se não existisse o “comunismo”, não sei o que o seria dos movimentos de ultradireita. Talvez perdessem a força que a maioria das religiões tem ao pregar o “grande perigo” do pecado, do diabo, do inferno etc. Sem o fortalecimento do medo pelo desconhecido, multidões de fiéis se dissolveriam em pouco tempo. 

E hoje estão de volta o discurso de ódio, o puritanismo e a tão temível "invasão comunista". O “outro” também volta a ser “o degenerado”, “o comunista”, “a ameaça à família e aos bons costumes”. Os “bons e sãos” são agora como Integralistas repaginados pelos recursos da informática; suas ideias extremistas e medos infundados se espalham com maior velocidade e força de persuasão.     

Enfim, a história não é linear, como queremos e nos ensinam a acreditar que seja; ela se move em círculos num vaivém infinito. Nietzsche, internado em manicômio após um colapso mental, talvez sofresse de excesso de lucidez em um mundo programado para ser insano. Os desajustados somos nós que ainda acreditamos que a sociedade tem conserto. Não tem. Não pode ter. Há outros interesses em jogo que mantêm as engrenagens emperradas para que o poder de alguns se perpetue. 

Ou você ainda acredita que a saúde, a educação e a segurança voltarão a ser boas para todos algum dia, indistintamente, quando há centenas, milhares de empresas do setor privado que lucram fortunas com essa “deficiência” nas políticas públicas? 

Bom, se acredita, estará a salvo, pois continuará se entregando a promessas vãs e ameaças que nunca existiram de fato (pelo menos, não com a força que foi propagada). Os "sãos e bons" são os que não destoam. Se contestar a "ordem" imposta, irá para o calabouço, o hospício ou para a cova.

Gostemos ou não, é assim que tudo funciona.

   



sexta-feira, 2 de novembro de 2018

Mais aviso que epitáfio






Tenho um livro sombrio de 2003 sobre a morte (sobre o “se deixar morrer” e “matar para realizar a vontade dos que querem morrer”), chamado O COVEIRO. É uma novela literária meio “trash”. Se tudo correr bem, este livro, junto com CAÇADORES NOTURNOS e mais o inédito ESCORPIÃO, que encerra a minha trilogia SUBTERRÂNEOS DO DESEJO... os três serão publicados em nova edição (revista) e edição inédita para ESCORPIÃO ainda este ano. Os dois primeiros, apenas em eBook (livro digital), o terceiro em edição convencional, mas limitada e numerada (para colecionador).

Será um derradeiro “desatino” da Editora Desatino, já que não há mais como distribuir livros físicos, nem pontos de venda.


Para mim, como autor, será ainda pior, pois me colocará em risco: os três títulos abordam o desejo e o sexo nas mais variadas formas. Sexo sempre será um tabu em um país que não consegue se olhar no espelho e ver como realmente é, não o que gostaria de ser (e muitos acreditam ser). Em vez de gozar livremente o desejo, falsos puritanos preferem fiscalizar o tesão alheio. O peso da culpa cria amarras, não deixa a pessoa viver plenamente. Essa repressão interior costuma ser devolvida ao “outro” em altas doses de ódio, rancor, inveja.


Nelson Rodrigues disse certa vez: “O que seria dos padres, se não existissem as feias?” Eu me atrevo a “atualizar” essa pergunta para: “O que seria da internet hoje, se as transas fossem muito boas para todos?”


Mas, voltando aos mortos de O COVEIRO...


Para escrever este livro, fiz vários passeios no Cemitério do Araçá (não tão bonito e rico quanto outros com túmulos e esculturas magníficas, como este da foto, mas creio que é o único que tem uma bela visão panorâmica de São Paulo). Lá estão os anônimos e também os famosos, como Cacilda Becker, Nair Bello (na época de produção do livro, ela ainda estava viva) e outros que já não me lembro. Sinceramente, cemitérios me trazem paz, fico calmo e mais criativo que em outros lugares. É inspirador passear pelos corredores, ver fotos e ler epitáfios. Cada foto é uma história diferente, com início, meio e fim. Mas gosto mesmo é de visitar túmulos de gente que não conheci. Sei lá, acho que, com o passar dos anos, fica estranho. Quando temos mais gente conhecida e amiga sepultada do que nas ruas, bate uma sensação de que a nossa história começou a se apagar; não há mais testemunhas daquilo que vivemos.


Bom, em alguns casos, é melhor nem ter mais testemunhas de certos “deslizes” na nossa biografia. A criatura que ainda podia nos fazer algum tipo de “chantagem”... já foi! Ufa, menos um!


Preciso fazer aqui uma pausa para “ilustrar” essa questão de já termos mais gente nossa enterrada do que viva... Meu pai costuma dizer que, ultimamente, com mais de oitenta anos, para não ser surpreendido, ao encontrar um amigo na rua já vai logo beliscando para perguntar:


“Bah, tchê, tu estás vivo mesmo ou eu já morri também?”


Ainda sobre as fotos... Admito que é a parte do passeio que mais me atrai. Fico intrigado com a escolha que o familiar fez. Há alguns que morreram com trezentos anos, mas a foto é da fase jovem. Será que foi por imposição do morto? “Se colocarem a minha foto de velho, ninguém vai receber um centavo de herança!” Também há os lindos e as lindas. Sim, os novos são mais sortudos; morrem ainda bonitos e viçosos. É claro que há também os feios. Esses são os que me deixam mais confuso. Será que não dava para melhorar a foto ou foi de maldade mesmo que algum parente desalmado fez aquilo com o morto para expor e eternizar a feiura dele? Em vez de homenagem, seria uma vingancinha póstuma?


Não, a gente não vai saber nunca a resposta. Cada foto de morto é uma espécie de esfinge para curiosos incorrigíveis (como eu).


Gabriel García Marquéz escreveu em MEMÓRIAS DE MINHAS PUTAS TRISTES, seu belo e, ao mesmo tempo, melancólico romance de despedida da literatura, que uma pessoa só pertence a um lugar quando enterrar seus mortos nele. Não sou de São Paulo, vim de longe, mas já enterrei alguns mortos “meus” aqui. Então já sou daqui. Sou e não sou só daqui, porque também tenho mortos meus em outros lugares. Andarilho de nascença, é natural que eu tenha deixado outros mortos por onde passei. No fundo, como diz o Ramiro da minha novela literária, todos nós somos coveiros: dos outros e de nós mesmos. Como túmulos ambulantes, vamos carregando os nossos mortos por aí, até finalmente nos juntarmos a eles.


Com isso em mente, quando fui fotografar para a capa da nova edição de O COVEIRO (que, no fim, nem será utilizada) brinquei com o rapaz (um coveiro de verdade) que, a pedido da administradora do cemitério, me acompanhava pelas alamedas floridas e perfumadas do Araçá:


“Na minha lápide, se houver uma, quero que não escrevam essas frases piegas de saudades eternas da família, nem de que o morto foi muito melhor do que ele realmente era, mas apenas: ‘ESTEVE AQUI QUEM AQUI NUNCA ESTEVE DE FATO’. Os que me conheceram de verdade e aguentaram as minhas esquisitices vão entender esse meu último recado (e não aparecerão tão cedo para me visitar).”


Enfim...


Feliz dia dos mortos para os que já morreram e para os que ainda estão vivos! Os vivos, ultimamente, andam precisando mais dessa felicidade do que os finados.


No mais, caro(a) leitor(a), deixe flores para os seus queridos defuntos, depois volte lá para aquela sua vidinha sem graça e tente dar uma bela e necessária sacudida nela, antes que seja tarde, se é que já não é!


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Crédito da foto do Cemitério São Paulo: “De Alfredo Oliani, destaca-se o conjunto escultórico ‘Último adeus’, considerada uma das obras mais instigantes da arte cemiterial na cidade de São Paulo. A obra foi encomendada por Maria Cantarella, por ocasião da morte do marido, Antônio. Representa um homem no vigor da idade inclinando-se sobre a esposa morta, em um apaixonado beijo de despedida. Oliani buscou atender ao pedido da viúva, de uma escultura que celebrasse abertamente o seu amor pelo marido, reconhecendo-o como vivo em sua memória e a ela mesma morta, sem a sua companhia.” (Wikipédia)