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sexta-feira, 26 de outubro de 2018

O país que fingimos não ver



“Em pouco tempo descobri que os dias só iam passando para os que estavam do outro lado das grades da Febem. Tudo estanca quando se está enjaulado. Às vezes eu pensava que meu único e maior delito tinha sido ficar ali, paradão, esperando que tijolos fossem empilhados e muros se agigantassem em volta do que restava da minha infância. Era como se eu, por livre e espontânea vontade, tivesse me deixado devorar por aquele útero de cimento, grades de ferro e arame farpado, que fora construído de modo estratégico para dissolver o que ainda restava da minha ingenuidade de pivete de rua. Nesse sentido, a Febem era uma excelente escola. Lá dentro a gente aprendia na marra que, para se manter boa e inabalável, a sociedade precisa produzir em séries intermináveis a culpa e os futuros criminosos. Sem os marginais o mundo perderia suas máscaras. A Febem era uma fábrica de culpados.”

[...]

“Dia sim, dia não, quando consigo descolar uns trocos nas esquinas, compro algumas latas de tinta e saio por aí rabiscando desenhos e escrevendo estas memórias, que são minhas e também de muitos outros iguais a mim. Uma palavrinha deixada às pressas aqui, outra mais adiante. Frases soltas e certamente mal escritas que eu, bem no fundo, sei que jamais serão lidas. Ou ainda: talvez tudo isso seja mera ilusão... E se aquele tiro me pegou mesmo pelas costas, lá na calçada, quando eu fugia dos manos? Ora, se estou morto, então todo o resto foi e ainda é apenas um delírio, um sonho bom que veio pra me salvar do medo, da dor, do desperdício de ter vivido tão pouco. Mas como saber se ainda estou vivo ou se já morri, se todos nas calçadas continuam olhando pra minha cara de fome e pros meus trapos sujos e não enxergam nada?”

(Dois trechos do meu romance juvenil MEMÓRIAS DO ASFALTO, lançado pela Desatino em 2007. Temas e discussões ainda atuais. Infelizmente, talvez nunca saiam dos noticiários do Brasil.)


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